Pitágoras (570 a.C. - 490 a.C.)
Da lavra inspirada do grande poeta latino Ovídio (43 a.C. - 18 d.C.), Metamorfoses constitui uma de suas obras de referência, sendo que, no último livro, o de número 15, vamos encontrar o famoso discurso em defesa do vegetarianismo e que Ovídio atribui ao grande filósofo Pitágoras. O texto que segue, ou seja, a tradução em português do referido discurso, é extraído da obra escrita no início do século vinte pelo renomado ativista vegetariano português Jaime de Magalhães Lima, intitulada "O Vegetarianismo e a Moralidade das raças", com as reticências que não prejudicam a compreensão e apreensão do inspirado texto. Segue, portanto, o discurso de Pitágoras em defesa do vegetarianismo.
"Havia em Crotona um homem da ilha de Samos que se exilara da pátria pelo ódio que tinha aos tiranos... Tinha com os deuses aturado comércio... O que sabia comunicava-o a uma multidão de discípulos que em um grande silêncio o admiravam...
Foi o primeiro que condenou o uso de comer a carne dos animais: doutrina sublime, e tão pouco apreciada, cuja paternidade se lhe atribuía.
Deixai, mortais, dizia, deixai de vos servir de manjares abomináveis: dão-vos os campos searas abundantes; para vós vergam de frutos as árvores com os mais belos pomos e produzem uvas as vinhas. Tendes legumes d'um suave gosto, excelentes alguns quando cozidos. O mel e o leite não vos são defesos. Enfim para vós, a terra é pródiga de suas riquezas e oferece-vos toda a espécie de alimento sem que necessiteis para sustentar-vos de recorrer à morte e à carnagem.
Só aos animais convêm o comer carne, e ainda nem todos se sustentam dela. Os cavalos, os bois e as ovelhas vivem só de ervas; apenas as feras, os tigres, os leões, ursos e lobos fazem da carne seu sustento habitual.
Que crime horrível lançar em nossas entranhas as entranhas de seres animados, nutrir na sua substância e no seu sangue o nosso corpo! Para conservar a vida a um animal, porventura é mister que morra um outro? Porventura é mister que em meio de tantos bens que a melhor das mães, a terra, dá aos homens com tamanha profusão, prodigamente, se tenha ainda de recorrer à morte para o sustento, como fizeram ciclopes, e que só degolando animais seja possível cevar a nossa fome?
Procedia diferentemente a idade de ouro, ditosos tempos que nós assim chamamos. Contente com as plantas e os frutos que a terra produz, o homem não manchava a sua boca com o sangue dos animais. As aves voavam sem temor no meio dos ares... O universo tranquilo desconhecia laços e ciladas. Tudo era paz.
Aquele, seja quem for, que para desgostar os homens dos alimentos inocentes com que se alimentavam, criou o costume de comer a carne dos animais, abriu na mesma hora a porta a crimes de todo o gênero; porque foi sem dúvida pela carnificina desses animais que o ferro começou a ser ensanguentado. Na verdade, é permitido tirar a vida aos animais que nos atacam, mas não nutrir-nos com a sua carne.
Todavia, fomos mais longes ainda; quisemos sacrificá-los aos deuses... Que crime tínheis cometido, ovelhas inocentes, rebanhos tranquilos, que dais aos homens um néctar delicioso, que para vos cobrir deixais despojar do vosso manto e que enfim lhes sois mais úteis quando vos deixam viver do que quando vos matam? Que mal faz o boi, doce animal, incapaz de vos prejudicar e que não é senão para o trabalho? É necessário ser ingrato, desnaturado, de todo indigno dos bens que nos dá a terra, quando vamos tirar da charrua esse animal tranquilo, o melhor dos nossos obreiros, para o conduzir ao altar a receber o golpe fatal nessa cabeça que tantas vezes gemeu sob o jugo e, por um trabalho duro e penoso, tantas vezes nos renovou as searas.
Não bastava aos homens cometerem tão grandes crimes, precisavam ainda da cumplicidade dos deuses, crendo que lhes podia ser agradável o sacrifício d'um animal tão útil... Levam assim a vítima ao altar; lá, recitam sobre ela orações que ela não ouve; põe-lhe entre as pontas, que foram doiradas, um bolo feito d'aquele mesmo grão que ele cultivou, e afunda-se-lhe no seio a lâmina sagrada...
Logo lhe tiram as entranhas ainda palpitantes, para as consultarem e lerem n'elas os segredos dos deuses. Dizei-me, homens insaciáveis, d'onde vem esta avidez que só pode fartar-se em carnes proibidas. Deixai tão criminoso uso. Segui os conselhos que vos dou. Sabei que, quando comeis a carne do boi que acabais de degolar, comeis aquele que vos lavrou o campo. Pois que é um deus que me inspira, só falo segundo a sua vontade...
As nossas almas são sempre as mesmas, embora tomem formas diferentes conforme os corpos que animam. Que a piedade não seja sacrificada à vossa gula, que para vos saciar não expulseis dos seus corpos as almas dos vossos pais nem vos alimenteis do seu sangue...
É acostumar-nos a derramar sangue humano degolar animais inocentes e ouvirmos sem piedade seus tristes gemido. É desumanidade não nos comovermos com a morte do cabrito, cujos gritos tanto se assemelham aos das crianças, e comermos as aves que tantas vezes demos de comer. Ah! quão pouco dista d'um enorme crime!
Funesta aprendizagem! Deixai tranquilamente o boi lavrar a terra e seja a sua morte o termo natural de sua velhice. Contente-nos o velo do rebanho que nos livra da atmosfera agreste, e o leite que as cabras dão para nos nutrir; parti os vossos laços e as redes, não mais o visco engane a ave crédula. Não mais se leve aos cerco o tímido veado, perturbado com as penas que o espantam, e que não mais se oculte o anzol em traiçoeiro engôdo. Matai os animais que podem fazer mal, mas contentai-vos em só lhes dar a morte e não os comer, e que só vos sirvam alimentos legítimos". (Do poeta Ovídio, "Metamorfoses", Livro XV, extraído de "O Vegetarianismo e a Moralidade das Raças", do autor Jaime de Magalhães Lima, disponibilizado por The Project Gutenberg, https://www.gutenberg.org/files/24338/24338-h/24338-h.htm, acesso em: 26/03/2018)
Nota: em nossa opinião, quando o autor declara "matai os animais que podem fazer mal", ele se refere ao princípio de autodefesa em face de grave ameaça.
Ovídio (43 a.C. - 18 d.C.)