Resumo
O
presente artigo tem como objetivo recolher e expor as teorias
contidas nas escrituras budistas sobre o consumo de carne e, dessa
forma, dar acesso ao leitor às fontes budistas que tratam sobre o
tema, sem as interferências inevitáveis do sectarismo religioso e
da visão particular de cada denominação budista.
Tencionamos
demonstrar a importância dada ao regime alimentar vegetariano em uma
das maiores tradições religiosas do mundo.
O
tema é bastante controverso uma vez que o Budismo atualmente é um
fenômeno religioso multifacetado sem nenhuma centralização ou
autoridade legislativa “universal”. Cada denominação admite um
dado conjunto de ensinamentos e, frequentemente, há cisões internas
que as subdividem, tornando ainda mais complexa a idéia de um
ensinamento válido universalmente.
Em
geral, a discussão desse tópico suscita acaloradas discussões
entre pró-vegetarianismo e pró-carnivorismo, cada lado apresentando
os argumentos que acham cabíveis para a defesa de seu próprio ponto
de vista.
Introdução
O
Budismo, encarado como fenômeno histórico, nasce no contexto da
Índia Védica do século VI a.E.C. (aproximadamente). Falamos
aqui em “cultura védica” em sentido amplo, uma vez que mesmo as
escolas de filosofia (darsanas) ditas “não védicas” se abeberam
da mitologia e da terminologia técnica própria dos Vedas e de seus
comentários.
Nenhum
fenômeno histórico pode ser visto como estanque ou isolado do meio
em que surge. O Budismo, igualmente, não pode ser analisado, em
nenhum de seus aspectos, como um fenômeno desconectado das diversas
influências da época, nem da mentalidade Indo-Ariana como um
todo. A cultura Indo-Ariana é fruto das imigrações de
populações (chamadas “arianas”, do sânscrito “arya”, ou
seja, “nobre”, “excelente”, “exímio”), vindas
provavelmente do Cáucaso, para o Vale do Indo que, desde o terceiro
milênio a.E.C., tinha uma civilização urbana denominada pelos
arqueólogos de “Cultura de Harapa” e “Mohenjo Daro”. A
população originária do Vale do Indo, os drávidas, foram
submetidos pelos imigrantes que trouxeram suas próprias formas de
culto, sua própria tecnologia bélica, agrícola e pastoril e o
gérmen de uma filosofia que se desenvolveria, enormemente, nos
milênios por vir.
Por
volta do ano 1000 a.E.C. se observa o deslocamento dos imigrantes
arianos para a região do Vale do Ganges e uma certa fusão entre
elementos culturais originalmente arianos e locais assim como uma
certa miscigenação racial. O sistema de “varnas” (castas)
já está estabelecido, mas não ainda baseado no nascimento e sim na
propensão natural dos indivíduos. A ordem da sociedade é
estabelecida entre os brâmanes (sacerdotes), os ksatriyas
(guerreiros e governantes) e os vaisyas (comerciantes, lavradores e
artífices).
Abaixo
dessas divisões estão os “avarna” (sem casta), ou seja, aqueles
que não se enquadram em nenhuma das funções estabelecidas para o
funcionamento da sociedade. Os “avarna” se tornam os “sudras”,
ou seja, aqueles que fazem os trabalhos que nenhuma outra casta pode
ou deve executar. Além dessa divisão existe também a idéia
de “ativarna”, ou seja, aquele que está acima de todas as
castas, que seriam os monges renunciantes
(bhikshu/sannyasin/sadhu/sramana) e que estariam livres de todos os
deveres de casta e de todos os vínculos com a ordem social por
dedicarem-se exclusivamente à busca pela libertação (moksha). Por
um lado, o “ativarna” não tem casta por ser superior às funções
executadas em todas as castas, por outro, o “avarna” não a tem
por ser inferior a todas elas e não se encaixar adequadamente em
nenhuma delas.
Com
o decorrer do tempo, o sistema de castas sofreu modificações
substanciais. O estabelecimento de reinos e pequenos estados em todo
o território indiano, com as relações de poder que isso implica,
deu ensejo ao estabelecimento de “castas hereditárias”, ou seja,
pertencia a uma determinada casta que nascesse em uma família a ela
pertencente. Algo análogo às modificações ocorridas no conceito
de “nobreza” no Ocidente[1].
Essas
modificações no sistema de castas e as conseqüentes injustiças a
que elas deram ensejo provocaram uma reação bastante vívida que
pode ser vista através de toda a literatura upanisadica e do próprio
Budismo. Nem as Upanisads, nem o Budismo eram contrários à
divisão da sociedade em castas em si. O Lalita-Vistara Sutra traz em
seu capítulo 3, linha 146:
“O
Bodhisattva respeita as distinções entre as castas. Ele não surge
numa casta inferior; Ele surge apenas em uma das castas mais
altas, a casta dos Brahmana ou a dos Ksatriya”.
A
interpretação de tal verso é clara. O Bodhisattva é sempre
inclinado às atividades sagradas do brâmane (estudo, ensino e
execução dos ritos), ou às atividades de manutenção da ordem
(guerra, governo e lei) dentro de uma sociedade como ksatriya . Fica
claro também a ausência da palavra ‘família’ no verso. Ele não
diz “nunca surge em uma família de casta inferior”, mas sim“ELE
surge apenas em uma das castas mais altas”.
No
Satasahasrika-Prajnaparamita, Capítulo X, podemos ler:
“Ele
nunca surge nas castas baixas: isto é uma marca distintiva do
Bodhisattva”.
“O
Bodhisattva surge em uma alta casta, a casta dos Ksatriya ou a casta
dos Brahmana; ele surge em uma verdadeira linhagem à qual
pertenceram os Bodhisattvas precedentes”.
Note-se
que ele não remete à hereditariedade, mas sim a uma “verdadeira
linhagem à qual pertenceram os Bodhisattvas precedentes”,
ou seja, a uma conexão espiritual com as atividades dos Bodhisattvas
precedentes. Eram contrários sim ao sistema de castas
hereditárias, uma “inovação” dentro da mentalidade Tradicional
Indo-Ariana. Sendo assim, a quebra da tradição não veio com o
Budismo ou com as Upanisads, mas sim com a decadência da sociedade
védica .
No
Dhammapada, Capítulo XXVI, verso 393 pode-se ler:
“Não
pelos cabelos trançados, não pela família e nem pelo nascimento
alguém se torna um brâmane; Naquele em que há verdade e retidão,
ele é um abençoado, ele é um brâmane.”
As
palavras “não pela família e nem
pelo nascimento”, tornam difícil
qualquer contradição. O respeito pela posição do brâmane é
evidente, mas não se obtém essa posição pela simples
hereditariedade. Outras “inovações” provenientes dos
costumes locais drávidas também se insinuaram. O sacrifício de
animais, o consumo de carne e seus derivados estavam entre elas. Mais
à frente, daremos elementos documentais de tal afirmação. O
Budismo não foi o único a surgir dentro do contexto de
“revitalização das tradições”. Os movimentos liderados por
sramanas (monges renunciantes) com o objetivo de revitalizar o
espírito dos Vedas abandonando o formalismo vazio teve muitas outras
formas.
Alguns
teóricos tendem a ver o Budismo como uma “ruptura” com a
mentalidade védica, mas isso é desmentido pelas próprias
escrituras budistas. Estudiosos como Ananda Kentish Coomaraswamy, já
notaram que o Budismo original era muito mais uma tentativa de viver
adequadamente o espírito védico, sem os acréscimos espúrios e o
formalismo vazio dos ritos com objetivos puramente mundanos, do que a ideia de se fazer algo novo e desconectado da Tradição.
Tendo
em vista tal panorama, seria imprudente afirmar alguma coisa sobre os
ensinamentos budistas originais sem uma cuidadosa análise de seu
pano de fundo e de suas origens pré-budistas. No presente
artigo, discutiremos sobre a proibição do consumo de carne dentro
da mentalidade védica e, mais especificamente, dentro do Budismo,
utilizando como fontes primárias o estudo dos costumes da Índia
pré-budista e as escrituras tradicionais budistas que versam sobre o
tema.
I.
Vegetarianismo Védico
A
cultura védica, desenvolveu ao longo de milênios, um especial senso
de proteção em relação aos animais, especialmente à vaca.
Existem
muitas razões para tal fato. Os arianos imigrantes, um povo
essencialmente pastoril, viam na posse da vaca um sinal de riqueza e
continuidade. A vaca fornecia o leite e ,com este, eram produzidos o
queijo, a manteiga, o coalho, o yogurte e outros alimentos. O estrume
da vaca adubava o solo e é um excelente combustível para se acender
o fogo dos sacrifícios aos deuses e para a preparação dos
alimentos . A vaca dava cria e outras vacas serviriam como ‘mães’
do povo, confortando-os com alimentos e fertilizando o solo para que
dele fossem tirados os vegetais. Em outras palavras, como uma mãe
que sustenta e auxilia seus filhos enquanto está viva, a vaca daria
muito mais sustento e auxílio viva do que morta.
Como
se não bastassem essas virtudes, a vaca ainda ajudava nos trabalhos
do campo, puxando o arado e emprestando sua força para os trabalhos
pesados. O temperamento dócil da vaca dava um exemplo de paciência,
perseverança e benevolência. A vaca era a própria personificação
de “Ahimsa” (não agressão). Tudo isso, ao longo do tempo,
estabeleceu uma relação de afeto verdadeiro que se traduziu em
muitos mitos e louvores às virtudes da vaca.
Muitos
deuses ganharam a vaca como companheira. Krisna, por exemplo, é
descrito como um príncipe-pastor, sempre cercado de vaqueirinhas
(gopi). Radha, sua esposa, é a principal delas. Siva tem como
montaria a Nandi, um boi. A própria Terra é descrita como Prthvi,
uma vaca. A própria palavra “Terra” em sânscrito é “go”, a
mesma palavra para vaca. Aliás, “go” significa também “raio
de luz”.
A
idéia de que um animal pudesse ser tão amigo do ser humano e
estabelecer com ele vínculos tão sólidos, fez com que a cultura
Indo-Ariana estendesse esse conceito para todas as outras formas de
vida. Tirar a vida de um ser inofensivo se tornaria o mais grave
crime dentro da mentalidade védica.
I.1.
Ahimsa
A
palavra “ahimsa” é comumente traduzida como “não-violência”.
Sendo assim, a idéia que se tem é a de que a cultura védica era
“pacifista” no sentido moderno da palavra. Isso não corresponde
à realidade.
A
Índia Antiga era uma sociedade governada por guerreiros (ksatriya) e
com uma longa tradição espiritual eminentemente guerreira. Os
arianos, além de pertencerem a uma cultura agrícola e pastoril,
também eram uma civilização guerreira, aristocrática e
sacerdotal. A própria casta sacerdotal não se furtava de atividades
guerreiras.
A
maioria dos clássicos espirituais da Índia Antiga remetem a
batalhas (Bhagavad-Gita, Ramayana, Mahabharata etc.) e neles os
deuses são apresentados portando armas, em posição de luta, usando
carapaças, armaduras etc. Em uma rápida passada de olhos pelos
avatares (manifestações) de Vishnu, por exemplo, podemos constatar
que a maioria deles são manifestações guerreiras (Varaha,
Narasimha, Rama, Parasurama, Krishna e o vindouro Kalki, ou seja, de
dez avatares, seis estão diretamente envolvidos com a guerra).
É
muito difícil acreditar que em uma sociedade com tal panorama
cultural houvesse uma idéia como “não-violência”, ou seja, uma
idéia de “demonização” de toda e qualquer ação violenta, de
rendição incondicional, de não uso da força, de não reação
perante uma agressão ou coisa parecida.
No
Bhagavad-Gita, Capítulo 2, versos 31, 32 e 33, por exemplo, Krisna
aconselha Arjuna nos seguintes termos:
“Considerando
seu dever específico de ksatriya, você deve saber que não há
melhor ocupação para você do que lutar conforme determina seu
dharma; e assim não há necessidade de hesitação.
Ó
Partha, felizes são os ksatriyas a quem aparece esta oportunidade de
lutar, abrindo-lhe a porta do paraíso. Se, contudo, você não
executar seu dharma e não lutar, então certamente incorrerá em
falta por negligenciar seus deveres e perderá sua reputação.”
Sendo
assim, a tradução de “ahimsa” como “não-violência”, no
sentido que emprestamos hoje a essa palavra, não é correta. A
palavra “ahimsa” aparece no Rig-Veda, no Sama-Veda, no Isavasya
Upanishad, no Yoga-Sutra de Patanjali entre outros. O
conceito é diretamente ligado ao de “Viswaprema”, ou “amor
pela vida”.
A
palavra “Himsa”, em sânscrito, quer dizer “ferimento”,
“lesão”, “dano”, “mal”, “doer”, “malícia” .
Himsa é a malícia ou a personificação do desejo de causar dano.
“Himsarata” é o prazer em causar dano ou em prejudicar.
“Himsakarman” é ato hostil ou injurioso. Sendo assim, “Ahimsa”
é, literalmente, “aquilo que não causa dano, mal”, ou “aquilo
que não é feito com o desejo de causar dano”, “aquilo que não
é feito maliciosamente”.
Violência,
em sânscrito é “prabalah” ou “vegavam”. O sentido dessas
palavras é a de “exercer uma força contra aquilo que lhe causa
obstáculo”, ou seja, não tem uma conotação negativa. É o mesmo
sentido de “vento violento”, “choque violento” ou “violenta
explosão”, sem um conceito moral intrínseco (M.Monier-Williams,
2008).
Atacar
com violência um malfeitor que lhe causa problemas ou está lhe
atacando não porta o sentido de “malícia”, de “desejo de
causar dano”, “desejo de causar mal”, mas, pura e simplesmente,
de se preservar, preservar a terceiros ou preservar um bem que está
sendo usurpado ou atacado. Esse é o senso indo-ariano.
A ideia de empregar a palavra “violência” como algo negativo é
moderna. Tomou sentido mais definido depois de Nietzsche, G. Sorel e
o sindicalismo revolucionário (Lalande, 1999). A palavra também
adquire contornos negativos com Montesquieu, no “Espírito das
Leis”, nada tendo a ver com os conceitos védicos. Atacar um
animal não é violência pois não é “exercer uma força contra
aquilo que lhe causa obstáculo”, mas sim “himsa”, ou seja é o
desejo de causar dano (a morte) ou prejudicar (através de um
tratamento cruel) para satisfazer ao próprio desejo (desnecessário)
por sua carne.
Os
indo-arianos, muito cedo perceberam que não tinham nenhuma
necessidade de consumir a carne de animais para manterem-se fortes e
saudáveis. Ao seu senso guerreiro, parecia grotesca injustiça e
covardia abjeta atacar a um animal indefeso e lhe tirar a vida sem
nenhuma necessidade. Assim como os
bovinos eram excelentes amigos , os outros animais também deveriam
ser respeitados e tinham o direito à vida. Também eles tinham suas
funções na Terra. Só seria lícito lhes atacar em caso de defesa.
Dessa
maneira, outros animais são agregados ao culto indo-ariano. As
serpentes representam o ciclo do tempo, a renovação e auxiliam Siva
quando ele suga o oceano envenenado pelas forças do mal. O leão é
símbolo da nobreza, a montaria da deusa Durga. O rato é montaria de
Ganesa e se reveste de diversos significados, as aves, os répteis e
todas as outras formas de vida são valorizadas e respeitadas como
parte de um todo indissolúvel chamado vida.
As
escrituras hindus vão confirmar essas ideias e lhes revestir de uma
autoridade incontestável pela Tradição.
I.2.
O Vegetarianismo nas Escrituras Sagradas da Índia Antiga
As
proibições em relação ao carnivorismo dentro da literatura védica
são realmente abundantes. Já no Rig-Veda existem vetos
explícitos ao consumo de qualquer tipo de carne:
“Aquele
que compartilha de carne humana, de carne de um cavalo ou de qualquer
outro animal, que priva outros do leite pelo assassínio das vacas, ó
rei, se como um demônio ele não desistir por outros meios, então,
você não deve hesitar em cortar fora sua cabeça.” (Rig-Veda
10.87.16)
O
Código de Leis de Manu (Manusmriti ou Manava-Dharma-Sastra) é
abundante em passagens proibitivas em relação ao consumo de carne.
Citaremos apenas algumas passagens, uma vez que há uma coletânea
imensa de versos que tratam sobre o tema nessa escritura:
“Aquele
que permite o assassínio de um animal, aquele que o corta, aquele
que o mata, aquele que o compra ou vende, aquele que o cozinha,
aquele que o serve e aquele que o come, todos devem ser considerados
como assassinos do animal. Não há nenhum pecador tão grande que
aquele que não cultua aos deuses, aos ancestrais e aquele que busca
robustecer sua própria carne pela carne de outros seres.”
(5.51-52)
“Aquele
que machuca seres vivos com o desejo de dar prazer a si mesmo, nunca
encontrará felicidade nessa vida nem na próxima.” (5.45)
“Carne
nunca pode ser obtida sem dano de seres vivos e ferir aos seres vivos
é um impeditivo para se alcançar as bênçãos celestiais; dessa
maneira, devemos nos afastar do uso de carne. Considerando bem a
desagradável origem da carne e a crueldade de agrilhoar e assassinar
seres corpóreos, devemos nos abster inteiramente de comer carne.”
(5.48-49)
No
Mahabharata podemos ler:
“O
virtuoso Narada disse que o homem que se alegra em aumentar sua
própria carne comendo a carne de outras criaturas, se encontrará
com o desastre.” (115.12)
“Patifes
e velhacos iniciaram a oferenda de bebidas alcoólicas, peixes,
animais e sacrifícios humanos em um yagya (rito). Eles têm um
temperamento demoníaco e desejam comer carne em um yagya. Nos Vedas,
comer carne é proibido.” (Shantiparv)
No
Bhagavad Gita as referências são menos explícitas, pelo fato de
não se tratar de um livro que elenca leis. No entanto, Krishna deixa
bem claro que a ele só se devem oferecer alimentos livres de carne e
que seus devotos só devem alimentar-se com alimentos que foram
primeiramente oferecidos a ele. Sendo assim, a proibição do consumo
de carne é tácita:
“Os
pertencentes (a esse ensino, de Krishna), libertam-se de toda espécie
de obstáculos, (pois comem) alimentos que foram oferecidos em um
yagya. (Outros) que preparam alimentos para a satisfação de si
próprios, na verdade, comem apenas coisas sujas.” (3-13)
Se
alguém me oferecer com amor e devoção, uma folha, uma flor, frutas
ou água, eu as aceitarei.” (9.26)
“Aquele
que não é invejoso, mas é um amigo bondoso para todos os seres
vivos, que não se considera proprietário e está livre do falso
ego, que é equânime tanto na felicidade quanto na aflição, que é
tolerante, sempre satisfeito, auto-controlado e ocupa-se com o yoga
com determinação, tendo sua mente e inteligência focados em Mim –
tal devoto me é querido. (
12.13-14)
“Alimento
preparado mais de três horas antes de ser ingerido, alimento
insípido, decomposto e putrefato, e alimento que consiste em refugos
e substâncias intocáveis atraem aqueles que estão na escuridão.”
(17.10)
Cremos
não haver necessidade de citações e explicações adicionais nesse
ponto. A clareza e abundância das citações escriturísticas hindus
nos mostram bem claramente qual era o contexto ideológico em que o
Buda histórico nasceu e foi criado. Algumas dessas escrituras
citadas são posteriores ao período em que se estima que o Buda
tenha vivido. No entanto, são uma clara demonstração da
importância dada ao vegetarianismo dentro da Antiga Índia, sendo
apenas a formalização escrita de práticas bem mais antigas.
II.
O Buda histórico e o Vegetarianismo
Os
dados de que dispomos sobre a vida do Buda histórico se baseiam nos
sutras, em seus estudos e na historiografia budista.
Tendo
em vista o panorama cultural da Antiga Índia, seria quase
inquestionável o fato de Buda ser vegetariano. Um membro da nobreza
guerreira não vegetariano seria uma exceção que causaria escândalo
na sociedade. No entanto, modernos estudiosos do Budismo levantaram
uma série de objeções em relação a isso. Curiosamente, a maioria
desses estudiosos estavam, de alguma forma, ligados a facções
budistas com interesses em provar que Buda não era vegetariano para
justificar as próprias práticas institucionais. A
isenção dessas fontes é bastante questionável. No entanto, é
nosso dever científico analisar os argumentos apresentados e, se for
o caso, aceitarmos, como ao menos possíveis, seus argumentos. Nosso
interesse específico neste artigo é dar acesso teórico às
práticas defendidas pela antiga doutrina budista em si e não aos
desdobramentos e inovações que poderão ser estudados em um artigo
futuro.
Caberia
aqui lembrar que entre os budistas japoneses, coreanos, tibetanos e
do sudeste Asiático, a absoluta minoria é vegetariana. Já entre os
budistas chineses e taiwaneses, o vegetarianismo é uma regra
observada com extrema seriedade.
No
Japão, por exemplo, ocorre um fenômeno bastante curioso. Os templos
que oferecem treinamento aos monges, com exceção dos da “Escola
da Verdadeira Terra Pura” e os praticantes do “Shugendô” (uma
religião que mistura xamanismo e Budismo Esotérico), são
vegetarianos estritos. No entanto, depois que acaba o treinamento
básico (em regime de internato) nos templos, os monges já ordenados
passam a comer carne sem nenhuma restrição. Da mesma maneira, os
fiéis não observam quaisquer restrições dietéticas, mas sabem
que é proibido fazer qualquer oferenda com carne nos altares
budistas.
II.1.
Buda e a “Carne de Javali”
A
afirmação inicial utilizada para validar o argumento de que Buda
consumia carne é o de que ele morreu devido a uma infecção causada
por carne de Javali, carne essa que lhe teria sido servida por um
ferreiro, Chanda. A citação vem do Cânon Páli, Digha Nikaya
16, Mahaparinibbana Sutta, 4.13-20. O
texto original diz que Buda consumiu “suska sukara-mardava”, o
que foi traduzido como “carne seca de javali” ou como “delícias
de porco”. No entanto, essa tradução é incorreta.
O
termo “suska” significa seco. Mas o termo “sukara-mardava”
significa literalmente “macio como a carne de um javali”. Se
estudarmos antiguidades indianas, vamos descobrir que a região de
Pava, onde Buda serviu-se de sua fatídica refeição, é rica em um
tipo de cogumelo chamado exatamente de “sukara-mardava” por causa
de sua consistência.
A
carne seca de Javali era consumida nas áreas onde tal animal era
raro e, em geral, era trazido de outras regiões, isto é, era
salgada e ressecada para que não se estragasse no transporte. No
entanto, na região relatada no sutra, havia durante todo o ano
javalis de todas as idades, ou seja, era fácil a obtenção de carne
fresca, não havendo necessidade do consumo de carne seca. Além
disso, Chanda, o ferreiro, era proibido por dever de casta de matar
um javali.
Em
Pava, as classes menos abastadas consumiam o cogumelo “sukara
mardava” fresco nas épocas de chuva e o secavam para se utilizarem
dele em outras épocas do ano, quando havia escassez do produto. A
época em que Buda morreu se situa exatamente no período fora da
estação chuvosa (na estação chuvosa, os monges se recolhiam) como
apontam os estudos do sanscritista Rhys Davids em seu livro “The
Buddhist Suttas”.
Outro
fato notável: estudos feitos com o cogumelo “sukara mardava”
mostram que algumas variedades de tal cogumelo são venenosas e que
podem causar a morte. Uma das principais manifestações clínicas do
envenenamento é uma intensa diarréia. Buda morreu exatamente com
esse sintoma. O argumento de que Buda morreu por ter consumido
carne se torna, dessa maneira, insustentável.
II.2.
O Sutra Jivaka
A
citação de um verso do Jivaka Sutta (Majjhima Nikaya 55) para
justificar o consumo de carne e afirmar que Buda comia carne é
também grandemente utilizado. A
citação em questão é:
“Jivaka,
existem três situações nas quais a carne não deve ser comida:
quando for visto, ouvido ou suspeitado que o animal tenha sido
sacrificado para o bhikkhu. Eu digo que carne não deve ser comida
nessas três situações. Eu digo que há três situações nas quais
carne pode ser comida: quando não for visto, ouvido ou suspeitado
que o animal tenha sido sacrificado para o bhikkhu. Eu digo que carne
pode ser comida nessas três situações.”
Segundo
as regras monásticas hinayana, os monges budistas deveriam viver dos
alimentos que conseguissem obter através da doação dos leigos. Só
poderiam comer uma única refeição por dia antes do meio-dia. Só
poderiam rejeitar doações no caso de verem, ouvirem ou suspeitarem
que haviam abatido o animal para seu consumo. Em outras palavras, se
o animal já tinha sido morto para o consumo de outros e, portanto,
não houve nenhuma participação nem direta nem indireta da pessoa
do monge nesse abate, poderia comer. Caso houvesse a mínima
suspeita, estava totalmente proibido de fazê-lo. Ou seja, a chegada
da carne à tigela do monge deveria ser um acaso absoluto. Ele
pediria esmola em uma casa qualquer e, por acaso, lhe dariam como
esmola os restos de comida da família onde haveria carne. Nem os
doadores sabiam que o monge ia pedir, nem o monge sabia o que ia
receber. As casas não podiam ser repetidas.
Cabe
lembrar que os monges da época do texto pediam em todas as casas e
que não podiam “pular casas” para não pedir em uma casa onde
pessoas não observavam as regras morais. Sudras, por exemplo,
comiam carne. Os drávidas nativos continuavam abatendo animais em
seus rituais e para consumo. A comida dada era a única disponível
para o consumo dos monges. As pessoas, às vezes, comiam a carne de
animais que já tinham sido encontrados mortos ou, em épocas de
maior escassez da natureza, a caça era a única alternativa à
existência.
Essa
é uma regra bastante específica. De qualquer forma, fica bastante
evidente que a carne especificamente abatida para que alguém a
compre ou abatida para que um budista a coma, é totalmente
proibida. Sendo assim, se o Buda histórico consumiu carne, o fez
dentro de uma contingência de completa exceção e não como algo
“normal” e aceitável.
II.3.
O argumento de que “Não Matar” é impossível
Um
argumento surgido recentemente é o de que o preceito de “não
matar” é impossível de ser cumprido. A justificativa é que cada
ato que possibilita a manutenção da vida envolve matar. Dessa
forma, lavar as mãos ou tomar banho mata bactérias e
microorganismos. Ao colhermos verduras e frutas estamos matando-as.
Para cultivá-las é necessário matar eventuais pragas. Para
cultivar frutas é necessário manter os pássaros afastados. Ao
caminharmos pelas ruas, esmagamos pequenos seres vivos. Ao nos
recostarmos em um lugar qualquer também estamos matando. Ao lavarmos
as roupas matamos e assim por diante.
O
ponto central desse argumento é a impossibilidade de se delimitar
uma escala de “valoração” em relação à vida animal,
microbiana, bacteriana ou vegetal. Tendo em vista esse
argumento, se afirma que o próprio Buda não cumpria o preceito.
Sendo assim, comer ou não comer carne se tornaria irrelevante para a
observância supostamente impossível do preceito.
Dentro
de um discurso retórico de aparência racional, esse nos parece ser
o argumento mais forte. As escrituras budistas, no entanto, já
haviam previsto esta justificativa que pode soar “lógica” para a
mentalidade moderna, mas não tem nenhuma base sólida para a Lógica
Budista e está fora do sistema de categorias utilizado pelos sutras
e sastras.
A
Lógica Budista foi grandemente desenvolvida por mestres do século
VI e VII da E.C. Os mais destacados entre esses mestres foram Dignaga
e Dharmakirti.
Teorias
como as ‘formas do silogismo’ (parartha-anumana),
a ‘essência do julgamento’ (adhyavasaya
– niscaya-vikalpa), a ‘importância
dos nomes’ – (apoha-vada),
‘inferência’ (svartha-anumana)
e muitas outras (Stcherbatsky, 1996), dão ao estudioso dos sutras um
critério muito claro para as questões relativas à interpretação. O
primeiro critério para a quebra do preceito de não matar refere-se
ao nível de consciência daquilo que é morto. Quanto maior o nível
de consciência, mais grave o ato, uma vez que quanto maior o nível
de consciência, maior o sofrimento envolvido.
O
segundo critério é que aquele que mata tenha a intenção de ferir
e matar desnecessariamente, ou seja, sem nenhuma necessidade extrema.
O
terceiro critério é que aquele que mata tenha consciência de seu
ato, ou seja, que esteja plenamente ciente de que está tirando a
vida e de que as causas pelas quais ele tira a vida não são de
necessidade absoluta. Esses
critérios ficam claros quando, por exemplo, no Sutra do Nirvana (do
cânone Mahayana, não confundir com o “Mahaparinibbana-sutta” do
cânone Páli), são expostos os “graus de matança”. Diz o
texto:
“Há
três graus de matança: o inferior, o médio e o superior. O grau
inferior consiste na matança de qualquer ser comum, desde uma
formiga a várias espécies de animais. (…)
Como
conseqüência da matança de grau inferior, a pessoa cairá no mundo
infernal, no mundo dos preta (fantasmas famintos) e no mundo dos
animais e sofrerá as dores próprias à matança desse grau. Por que
deve ser assim? Porque mesmo os animais e outros seres comuns possuem
as raízes do bem, por menores que elas possam ser. Eis por qual
motivo uma pessoa que mata seres sencientes como esses deve receber a
máxima punição por essa ofensa.
Matar
qualquer ser humano, desde um mortal comum a um anagamin[2],
constitui-se matança de grau médio. Como resultado desse ato, a
pessoa cairá no mundo infernal, dos preta e dos animais e sofrerá
as dores próprias à matança de grau médio. O grau superior de
matança refere-se a matar os pais, um arhat, um pratyekabuddha[3] ou
um bodhisattva[4] que atingiu o estado da não-retrogressão. Por
esse crime, a pessoa cairá no grande inferno Avici[5]. Bons homens,
se uma pessoa fosse matar um icchantika[6], essa matança não cairia
em nenhuma das três categorias mencionadas. Bons homens, os vários
brâmanes que eu disse ter matado, todos eles de fato eram
icchantikas.”
Esse
extrato do Sutra do Nirvana deixa claro que a doutrina budista
considera os “icchantika” como inferiores a uma formiga, apesar
de serem humanos. A referência aos brâmanes que Buda disse ter
executado encontra-se na seguinte passagem do mesmo sutra:
“Quando
observo o passado, recordo que era um rei de um grande estado neste
continente de Jambudvipa. Meu nome era Rsidatta e eu amava e venerava
as escrituras do Mahayana. Meu coração era puro e bom e eu não
tinha nenhum traço de maldade, inveja ou avareza. Bons homens,
naquela época eu abrigava os ensinos do Mahayana em meu coração.
Quando ouvi brâmanes caluniando esses sutras corretos e justos,
mandei matá-los imediatamente. Bons homens, como resultado dessa
ação, nunca mais caí no mundo infernal.”
Matar
um icchantika não cai em nenhuma das categorias de matança porque,
pelos critérios lógicos enunciados acima:
O
icchantika tem um nível de consciência muito baixo. Não se
compadece com a dor alheia e não se importa com o sofrimento que
inflige. Não consegue manifestar nenhuma característica de sua
natureza búdica e é refratário aos ensinamentos (vide critério
primeiro).
Quem
mata um icchantika não o faz com intenção de ferir e matar
desnecessariamente. O icchantika é uma ameaça ao meio em que vive,
causando o mal e o sofrimento aos seres que o cercam e sem nenhuma
possibilidade de modificação de comportamento. Eliminar o
icchantika é visto pela ótica das escrituras budistas como uma
medida saneadora (vide critério segundo).
Ao
matar o icchantika, apesar de se ter consciência do ato de matar em
si, há uma “necessidade absoluta” envolvida, ou seja, a
segurança de outros muitos seres (vide critério terceiro).
Os
mesmos critérios podem ser aplicados em relação à argumentação
de que, mesmo que não se coma carne, quebra-se o preceito de não
matar.
Quando
matam-se micro-organismos, vírus e bactérias, se faz por
necessidade absoluta de sobrevivência (segundo critério), ou seja,
não se enquadra como quebra de preceito.
Quando
se “matam” verduras, grãos e legumes para o consumo, as verduras
não têm consciência do sofrimento uma vez que não são portadoras
de sistema nervoso ou de “sentidos” (primeiro critério). O fato
de “matá-las” através da colheita é uma necessidade absoluta
de alimentação (segundo critério). Ou seja, não se enquadra na
quebra de preceito.
Quando
se matam seres ao deslocar-se pelas ruas, recostar-se em algum lugar
ou mesmo simplesmente respirar, não há intenção ao fazê-lo
(segundo critério) e nem consciência do fato quando ele ocorre
(terceiro critério).
Se
outras pessoas, voluntariamente, matam animais para salvar suas
colheitas de frutas etc., aquele que consome as frutas não é
culpado pelo fato uma vez que não o presenciou (assentindo com ele,
o que o enquadraria no segundo e terceiro critérios) e não sabe se
ocorreu (terceiro critério). Aqui, o máximo que se poderia fazer é
deixar clara uma posição contrária ao emprego de meios letais
desnecessários para preservação de colheitas.
Já
no caso do consumo de carne, a quebra do preceito é evidente segundo
os critérios da Lógica Budista.
Os
animais abatidos têm consciência e sentem dor. Os peixes, por
exemplo, têm uma enorme quantidade de terminações nervosas na
boca. Quando são fisgados, um gancho lhes atravessa o palato, o que
ocasiona muita dor. Ao serem pegos pela rede, se debatem
desesperadamente pois estão sufocando fora da água. A intensidade
de suas contorções dão idéia do sofrimento pelo qual estão
passando. Os bovinos demonstram medo intenso ao se encaminharem para
o abate. O modo como são encarcerados e tratados até o abate os
torna doentes e deprimidos. Suínos correm e gritam desesperadamente
quando percebem que serão abatidos. Ao serem esfaqueados, guincham
sofregamente e, até se exaurirem em meio ao próprio sangue, tentam
resistir.
Aves
fogem desesperadas mediante a mera possibilidade de serem capturadas.
As galinhas demonstram grande cuidado para com os pintinhos, os
defendendo de qualquer aproximação o que demonstra um alto nível
de acuidade.
Porcos
são comprovadamente mais inteligentes que cachorros. Conseguem
desenvolver afeto por humanos e até por outras espécies animais.
O
primeiro critério aponta, então, para uma alta gravidade no fato de
extinguir a vida de um animal tendo em vista sua consciência e o
sofrimento causado pelo ato. Quando matam um animal para o consumo
humano, o fazem tendo em vista o lucro que a venda da carne
ocasionará. Quem compra a carne, então, está pagando o serviço,
ou seja, é como se matasse diretamente.
O
ser humano não tem necessidade de consumir carne. Aliás, diversos
estudos apontam que o consumo da carne é prejudicial, apesar do
intenso lobby feito pela indústria pecuária no sentido de forçar
resultados contrários e espalhar boatos a respeito.
A
quantidade de proteínas diárias necessárias a um ser humano é
facilmente obtida através de uma série de alimentos. A soja, por
exemplo, fornece mais proteínas que a carne.
Mediante
tais informações o ato de exterminar animais para o consumo humano
se enquadra no segundo critério, ou seja, é matar e ferir
intencionalmente sem nenhuma necessidade.
Quem
come carne tem plena consciência de que foi necessário exterminar
uma vida para produzir a carne. Ninguém acha que carne é algum
fruto ou que existe algo como uma “plantação de bifes”.
Plenamente enquadrado no terceiro critério que determina a quebra do
preceito.
Dessa
forma, utilizando a Lógica Budista, se torna insustentável o
argumento de que cumprir o preceito de não matar é impossível ou
que o próprio Buda histórico não cumpria o preceito.
III.
O Vegetarianismo como preceito positivo nos Sutras Mahayana
Vários
sutras Mahayana trazem proibições explícitas ao consumo de carne.
Os sutras são a fonte principal dos ensinamentos budistas.
Brahmajala-Sutra
(Bonmon-Kyô), o sutra que enumera os preceitos do bodhisattva:
“Um
discípulo de Buda não deve comer carne deliberadamente. Ele não
deve comer carne de nenhum ser vivo. O comedor de carne perde a
semente da Grande Compaixão, corta a semente de sua natureza búdica
e faz com que todos os seres (animais e transcendentais) o evitem.
Aqueles que o fazem são culpados por inumeráveis ofensas. Assim,
Bodhisattvas não devem comer carne de nenhum ser senciente que seja.
Se, no entanto, ele o faz, ele comete uma ofensa secundária
(samghavasesa)”.
Uma
“ofensa secundária” ou “samghavasesa” é o equivalente a ser
excluído da Sangha temporariamente e ser castigado pelo crime
cometido. É o segundo pior tipo de quebra de preceitos mais grave
que pode haver.
O
Lankavatara-Sutra, é uma escritura que foi traduzida para o chinês
por Gunabhadra, pela primeira vez, no ano de 443 E.C. Gunabhadra foi
um importante tradutor da Índia Central que viajou para o Sri Lanka
e depois chegou à China no Período Liu Song. Ele trouxe da Índia o
Lankavatara Sutra, assim como o Srimala-devi-simhananda Sutra.
Todo
o capítulo oitavo do Lankavatara Sutra, Dharani, é dedicado a expor
as razões pelas quais o budista não deve consumir carne. O
reproduzimos aqui na íntegra:
“Naquela
época, Mahamati, o Bodhisattva-Mahasattva pediu ao abençoado por
mais explicação: Fale-me Abençoado, Tathagata, Iluminado, sobre o
mérito e vício relativo à questão de comer carne; para que deste
modo eu e outros bodhisattvas do presente e do futuro possamos
ensinar o Dharma a fim de fazer com que os seres abandonem seu ávido
apego por carne, seres que sob a influência da energia do hábito
relativo às existências carnívoras anseiam intensamente por
comidas de carne. Esses comedores de carne, ao abandonarem esse
desejo, irão buscar o Dharma e considerar todos os seres com amor,
como se fossem seus filhos, e terão grande júbilo e compaixão
pelos seres. Desenvolvendo compaixão eles irão colocar a si mesmos,
com disciplina, nos estágios para a senda dos bodhisattvas e se
tornarão despertos em grande iluminação.
Abençoado,
mesmo aqueles filósofos que mantêm idéias errôneas e estão
apegados às visões do Lokayata tais como o dualismo da existência
e não-existência, o niilismo e o idealismo, mesmo eles irão
proibir o consumo de carne e irão eles mesmos pararem de consumir. Ó
Grande Instrutor, aquele que promove a misericórdia é um ser
iluminado; não há nada de ruim em impedir o consumo de carne, não
só para si mesmo, mas para os outros também. Sim, deixe que O
Abençoado, cujo coração está preenchido com amor pelo mundo todo,
que considera todos os seres como seus filhos e que possui grande
compaixão em conformidade com seus sentimentos bondosos, ensine-nos
sobre o mérito e vício relativo ao consumo de carne, de modo que eu
e outros bodhisttavas possamos ensinar o Dharma.
O
Iluminado respondeu: “Escute então, Mahamati, e reflita bem; Eu
lhe direi.”
“Certamente,
ó Iluminado.” Respondeu Mahamati, o Bodhisattva-Mahasattva. E
pôs-se a ouvir.
O
Iluminado disse então a ele: Por inúmeras razões, Mahamati, o
Bodhisattva, cuja natureza é compaixão, não deve comer nenhuma
carne; Explicarei: Mahamati, nessa longa jornada de renascimentos,
não há um ser que, tendo assumido a forma de um ser vivo, não
tenha sido sua mãe, pai, irmão, irmã, filho ou filha, ou outro dos
laços que unem; ao renascer poderão adquirir a forma de animais,
selvagens ou domésticos; assim sendo, como pode um
Bodhisattva-Mahasattva, que tenciona aproximar-se de todos os seres
como se fossem ele mesmo e praticar as verdades ensinadas pelo Buda,
comer a carne de seres vivos que possuem a mesma natureza que ele
mesmo? Mahamati, mesmo o Rakshasa que ouve os discursos do Tathagata
sobre a elevada essência do Dharma alcança a percepção da
necessidade de proteger o Dharma e ter compaixão; até mesmo ele
evita o consumo de carne. Então Mahamati, onde quer que haja
evolução de seres vivos, que as pessoas divulguem com alegria o
sentimento de equanimidade, e pensem que todos os seres vivos devem
ser amados como filhos únicos, que todos deixem de comer carne! A
carne de um cachorro, jumento, búfalo, cavalo, homem ou qualquer
outro ser, não é para ser comida. O Bodhisattva, portanto, não
deve comer carne.
Pelo
amor à pureza, Mahamati, o Bodhisattva deve evitar a carne, que
nasce através de sêmen e sangue etc. Por receio de causar
sofrimento a outros seres, Mahamati, o Bodhisattva, que se dedica a
atingir elevada compaixão, não deve comer carne. Para ilustrar:
quando um cão vê à distância um caçador, cujo desejo é comer
carne, ele se apavora e pensa “eles são assassinos, irão me
matar”. Da mesma maneira, Mahamati, até mesmo os animais que vivem
nos céus, na terra e na água, ao verem comedores de carne à
distância, perceberão nos caçadores, por seu aguçado olfato, o
desejo por carne, e fugirão de tais pessoas o mais rápido que
puderem; pois tais pessoas são para os animais a ameaça de morte.
Por esta razão, Mahamati, que o Bodhisattva que se dedica ao caminho
da iluminação, que busca ater-se à grande compaixão, deixa de
comer carne, para não aterrorizar os seres vivos. Mahamati, a carne,
morta por pessoas sem sabedoria, está cheia de um odor fétido e
consumi-la traz má reputação, o que faz com que pessoas sábias se
afastem; O Bodhisattva não come carne. A comida dos sábios,
Mahamati, é a mesma dos Rishis. Não consiste de carne e sangue.
Portanto, Mahamati, o Bodhisattva não come carne.
A
fim de proteger a mente de todas as pessoas, o Bodhisattva, cuja
natureza é pura e santa e que não deseja que o ensinamento do Buda
seja distorcido, abstém-se de carne. Pois, Mahamati, há pessoas que
falam mal do ensinamento do Buda, elas dizem: “Porque aqueles que
dizem estar vivendo a vida de um Sramana ou um Brâmane rejeitam a
comida consumida pelos Rishis e, como animais carnívoros vagam pelo
mundo aterrorizando as criaturas, ignorando a vida que deve ser
levada pelo Sramana e destruindo os votos do Brâmane? Não há
nenhum Dharma em suas mentes, nenhuma disciplina.” Há muitas
pessoas que por essa causa tornam-se mentalmente desfavoráveis aos
ensinamentos do Buda. Por esta razão, Mahamati, a fim de proteger a
mente das pessoas, o Bodhisattva, cuja natureza é cheia de
misericórdia e que deseja evitar que o ensinamento do Buda seja
distorcido, abstém-se de carne.
Mahamati,
o odor fétido emitido por um cadáver é ofensivo. Que o Bodhisattva
abstenha-se de carne. Quando carne é queimada, seja de um homem
morto ou de outra criatura, não há distinção entre o odor.
Qualquer tipo de carne, quando queimada, emite um odor igualmente
nocivo. Portanto, Mahamati, que o Bodhisattva, que deseja a pureza em
sua prática, abstenha-se totalmente do consumo de carne.
Mahamati,
quando filhas da boa linhagem, desejando exercitarem-se em várias
disciplinas, tais como o desenvolvimento de um coração compassivo,
o domínio de fórmulas mágicas, ou o conhecimento mágico perfeito,
ou, ao engajarem-se em uma peregrinação pela senda Mahayana,
retiram-se para lugares isolados, demônios se aproximarão delas se
ainda comerem carne. Se, sentadas em poltronas ou assentos dedicados
à prática, serão impedidas de desenvolver siddhis ou alcançar a
libertação por causa do consumo de carne.
Até
mesmo a visão de formas objetivas faz com que surja o desejo de
provar seu sabor, que o Bodhisttava, cheio de piedade e considerando
todos os seres como seus filhos, abstenha-se de carne completamente.
Reconhecendo que sua boca tem cheiro extremamente fétido, mesmo
estando vivo, o Bodhisattva, cuja natureza é piedade, abstém-se
totalmente de comer carne.
O
comedor de carne dorme mal e acorda perturbado. Ele sonha com
acontecimentos terríveis. Ele vive sozinho em uma cabana vazia; seu
espírito é perseguido por demônios. Freqüentemente ele é abatido
pelo medo, ele treme, sem saber o por quê. Não há regularidade em
sua dieta e ele nunca está satisfeito. Em seu comer, ele nunca sabe
o que é o gosto próprio dos alimentos, a digestão e a nutrição.
Suas vísceras estão entupidas com vermes e outras criaturas impuras
por causa da carne. Ele já não se sente tão avesso a doenças. Se
eu ensino que consideremos a comida com se estivéssemos comendo
nossos próprios filhos ou tomando drogas, como poderia eu permitir
que meus discípulos, Mahamati, alimentassem-se de carne e sangue,
que são gratificantes aos tolos mas abomináveis aos sábios, que
trazem muito mal e afastam muitos méritos; que não são oferecidas
aos Rishis e são inadequadas?
Agora,
Mahamati, a comida que eu permito que meus discípulos consumam
agrada aos sábios e é evitada pelos ignorantes; mantém a maldade
afastada e é prescrita pelos antigos Rishis. Consiste de arroz,
cevada, trigo, feijões, lentilha, óleos, mel, melado, frutas etc.;
comida preparada com estes ingredientes é a boa comida. Mahamati,
pode haver pessoas irracionais no futuro que irão discriminar e
estabelecer novas regras de disciplina ética e que, sob a influência
da energia de hábito pertencente às raças carnívoras, irão
avidamente desejar o gosto da carne: não é para tais pessoas que a
alimentação acima foi sugerida. Mahamati, esta é a comida que eu
indico para os Bodhisattvas-Mahasattvas, que se dedicaram aos Budas,
que germinaram sementes de bondade e têm confiança. Aqueles que são
todos da família do Sakyamuni, filhos e filhas de boas famílias,
que não têm apego ao corpo, à vida, às propriedades, que não
cobiçam prazeres, não são gananciosos, que, sendo compassivos,
desejam abarcar a todos os seres vivos e consideram a todos como eles
mesmos, que têm afeto pelos seres como se fossem seus filhos.
Há
muitos males em comer carne Mahamati, numerosos vícios são gerados
nas mentes pervertidas daqueles que estão engajados no consumo de
carne. Os ignorantes e de mente fraca não estão cientes de tudo
isso, e dos deméritos ligados ao consumo de carne. Saiba, Mahamati,
que conhecendo isto, o Bodhisattva, cuja natureza é piedade,
abstém-se de carne.
Mahamati,
se a carne não é consumida por ninguém por razão alguma, então
não haverá mais destruição da vida. Na maioria dos casos o
extermínio de seres inocentes é feito por motivos de orgulho e
raramente por outras causas. Nada de bom pode ser dito sobre comer a
carne de seres sencientes, e alguém contaminado pelo ávido desejo
de carne pode chegar ao ponto de comer carne humana! Mahamati, na
maioria dos casos, armadilhas e outros dispositivos são colocadas em
vários locais por pessoas que perderam a noção de seu apego pelo
gosto da carne, e, assim, muitas vítimas inocentes são destruídas
por causa do valor atribuído a elas. Há até mesmo aqueles,
Mahamati, que são como Rakshasas de coração duro, e que costumam
praticar crueldades. Aqueles que, sendo completamente sem compaixão,
pensarão nos seres vivos como sendo destinados ao consumo e
destruição – nenhuma compaixão surgirá nesses.
Não
é verdade que a carne é comida aceitável e permissível para o
Sravaka quando a vítima não foi morta por este, quando este não
pediu a outros que a matassem e quando não era especialmente
destinada a ele. Novamente, Mahamati, haverá pessoas inconseqüentes
no futuro que se engajando no caminho ensinadas por mim e conhecidas
como filhos de Sakya, pessoas que vestirão o manto Kashaya como um
emblema, mas que serão em pensamento terrivelmente afetadas pelo
klesha das noções errôneas. Eles falarão sobre suas várias
práticas de disciplina, apegados à visão de uma alma pessoal. Sob
a influência do desejo pelo sabor da carne criarão argumentos
sofistas para defender o consumo de carne. Pensarão que estarão
permitindo que eu seja caluniado quando falam de fatos possíveis de
interpretar de várias formas. Imaginando que este fato em particular
seja possível interpretar, eles concluirão que o Iluminado permite
o consumo de carne, e que esta é mencionada entre os alimentos
permitidos e que provavelmente o próprio Tathagata o consumiu. Mas,
Mahamati, em lugar algum nos sutras o consumo de carne é permitido,
nem referido como sendo próprio entre os alimentos sugeridos aos
seguidores do Buda.
Se
eu tivesse, Mahamati, uma mente que permitisse o consumo de carne, se
eu dissesse que ela é própria para os Sravakas, eu não teria
proibido o consumo de carne para estes iogues, filhos e filhas da boa
linhagem. Desejando compartilhar a idéia de que todos os seres vivos
são para eles como um filho único, esses iogues são compassivos,
praticam a contemplação e uma vida ascética, eles seguem o caminho
do Mahayana. Mahamati, este ensinamento de que não se deve comer
carne é aqui dado a todos os filhos e filhas da boa linhagem, sejam
eles ascetas das florestas ou iogues que praticam os exercícios, se
eles desejam o Dharma e estão trilhando o caminho. Possuindo
compaixão, consideram todos os seres como filhos, assim atingem a
meta de sua disciplina.
Nos
textos canônicos o processo de disciplina é desenvolvido em
seqüência ordenada, como uma escada em que se sobe passo a passo,
degrau por degrau, cada um unido ao outro de maneira regular e
metódica. Há uma proibição quanto à carne encontrada em animais
já mortos. No presente sutra qualquer forma de consumo de carne, de
qualquer maneira e em qualquer lugar, é incondicionalmente e uma vez
por todas, proibida a todos. Assim, Mahamati, eu não permito que
ninguém coma carne, nem permitirei. Alimentar-se de carne, Mahamati,
é impróprio para monges. Poderá haver alguns, Mahamati, que dirão
que o Tathagata consumiu carne, eles o farão achando que isso irá
caluniá-lo. Pessoas ignorantes como essas serão amaldiçoadas por
seu próprio carma impeditivo, e cairão nas regiões onde longas
noites se passam sem ganho nem alegria. Mahamati, os nobres Sravakas
não consomem a comida das pessoas comuns, muito menos a comida que
vem da carne e do sangue, que é de todo imprópria. Mahamati, o
alimento próprio para meus Sravakas, Pratyekabuddhas e Bodhisattvas
é o Dharma, e não a carne. O Tathagata é o Dharmakaya, Mahamati;
ele se atém ao Dharma como alimento; seu corpo não é um corpo que
se alimentou de carne; ele não suporta nenhum alimento cárneo. Ele
já se expurgou da energia-hábito de sede e desejo que mantém preso
à existência; ele mantém a má energia-hábito das paixões
afastada; ele é totalmente emancipado em mente e sabedoria; ele é
aquele que tudo sabe, que tudo vê; ele considera a todos os seres
com imparcialidade e como seus filhos; ele é um grande coração
compassivo. Mahamati, considerando que todos os seres são como um
filho único, como posso eu permitir que os Sravakas comam a carne de
seus próprios filhos? Muito menos eu o faria! Afirmar que eu permiti
que os Sravakas, assim como eu mesmo, tomassem parte no hábito de
comer carne, Mahamati, é algo totalmente sem fundamento.
É
dito:
1.
Licor, carne e cebola devem ser evitados pelos
Bodhisattvas-Mahasattvas e por aqueles que são heróis da vitória.
2.
A carne não agrada aos sábios: possui um odor fétido e nauseante,
causa má reputação, é comida para os carnívoros; Digo-lhe
Mahamati, não deve ser consumida.
3.
Àqueles que consomem carne há efeitos ruins, àqueles que não a
consomem, méritos; Mahamati, você deve saber que os comedores de
carne trazem para si mau carma.
4.
Que o iogue deixe de comer carne, já que a carne também cresce nele
e o ato de comê-la é uma transgressão, já que a carne é
produzida por sêmen e sangue e o ato de matar os animais aterroriza
os seres.
5.
Que o iogue sempre deixe de comer carne, cebola e os vários tipos de
licor e alho.
6.
Não unte seu corpo com óleo de gergelim; não durma em uma cama
cheia de espinhos; os seres que vivem em cavidades e fora delas
ficarão terrivelmente assustados.
7.
Do comer carne surge arrogância, da arrogância surge uma noção
errônea, e dela a ganância; por esta razão deixe de comer carne.
8.
Da imaginação surge a ganância, e com a ganância a mente fica
estupefata; surge apego à estupefação e assim não há libertação
do nascimento e morte.
9.
Por causa de lucro seres sencientes são destruídos, pela carne é
dado dinheiro, isto é uma ação errônea e a ação irá maturar
nos infernos.
10.
Aquele que come carne, ignorando as palavras do Muni, tem uma mente
maldosa; ele é apontado nos ensinamentos do Sakya como o destruidor
do bem-estar dos dois mundos.
11.
Esses causadores de mal irão para os mais terríveis infernos;
comedores de carne serão jogados em horríveis infernos, tais como o
Raurava etc..
12.
Não há carne que possa ser considerada pura, seja ela não
premeditada, não pedida e não impelida. Portanto, deixe de comer
carne.
13.
Que o iogue não coma carne, é proibido por mim assim como pelos
Budas; Seres que se alimentam uns dos outros renascerão entre os
animais carnívoros.
14.
Aquele que come carne cheira mal, é desdenhoso e privado de
inteligência; ele nascerá novamente e novamente nas famílias
de Candala, Pukkasa e Domba.
16.
O consumo de carne é rejeitado por mim em sutras como o
Hastikakshya, o Mahamegha, o Nirvana, o Anglimalika e este, o
Lankavatara.
17.
O consumo de carne é condenado pelos Budas, Bodhisattvas e Sravakas;
se alguém devora a carne sem sentir-se envergonhado, para sempre
esta pessoa será insensata.
18.
Aquele que evita a carne etc., nascerá, por causa disso, na família
dos Brâmanes, dos Iogues, dotado com conhecimento e bem-estar.
19.
Que a pessoa evite todo tipo de consumo de carne, ignorando o que
outros possam dizer; esses teóricos que nasceram em famílias
carnívoras não entendem nada.
20.
Assim como a ganância é um impedimento para a libertação; da
mesma forma, consumir carne, licor etc., também são impedimentos.
21.
Poderá haver uma época em que as pessoas passem a fazer tolas
afirmações sobre o consumo de carne, dizendo: “A carne é própria
para se comer e permitida pelo Buda”.
22.
“Comer carne é uma medicina”; novamente, lembre que é a carne
de uma criança; siga as medidas corretas e seja avesso à carne.
23.
O consumo de carne é proibido por mim em todo lugar e em todos os
tempos para aqueles que estão procurando desenvolver a compaixão;
aquele que come carne renascerá como um leão, tigre, lobo etc.
24.
Portanto, não coma carne, tal ato causará terror entre as pessoas,
pois impede que surja a verdade da libertação; Deixar de comer
carne – este é o ensinamento dos Sábios.
Aqui
termina o oitavo capítulo, “Sobre o consumo de carne”, do Sutra
Lankavatara, a essência do ensinamento de todos os Budas.”
No
Kandaraka Sutra, do cânone Páli encontramos:
“Que
tipo de pessoa, bhikkhus, não atormenta a si mesma nem se dedica à
prática de torturar a si mesma e ela também não atormenta os
outros, nem se dedica à prática de torturar os outros – aquela
que… se abstém de aceitar carne sangrenta.”
O
Capítulo XIII do Sutra do Lótus faz repetidas advertências em
relação ao consumo da carne, e mais, proíbe até as relações com
aqueles que se envolvem na indústria da matança e venda dos
animais. O capítulo é extenso e não cremos haver necessidade de
reproduzi-lo aqui uma vez que, nos parece, está suficientemente
documentada a posição budista em relação ao consumo de carne.
IV.
Conclusão
Apesar
de objeto de muitas discussões e controvérsias, a nós parece
bastante claro o fato do Budismo advogar vigorosamente o
vegetarianismo. Como dissemos, no início desse artigo, os estudiosos
que tentam desmentir tal fato carecem de provas documentais e
doutrinárias para sustentar suas posições.
A
maioria das religiões tem prescrições relativas à dieta. Sejam as
religiões semitas, onde há um rígido posicionamento em relação
ao consumo de determinados alimentos, sejam nas religiões africanas,
autóctones ou arianas, a questão da alimentação sempre desempenha
um papel de significativa importância na prática religiosa.
O
estudo das relações desempenhadas entre religião e nutrição
ainda são bem poucos e carecem de maior atenção.
Mesmo
dentro das tradições cristãs, mais próximas dos estudiosos da
religião de forma geral, existem facetas inexploradas sobre este
objeto de estudo. A abstenção de vários alimentos por parte dos
monges, as restrições em relação aos alimentos de origem animal
em determinados períodos do ano para todos os fiéis (nas Igrejas
Ortodoxas Vetero-Calendaristas, por exemplo) e outras regras
observadas cuidadosamente, não receberam ainda uma atenção maior
em nossos estudos.
A
questão da relação comida-espiritualidade mereceria um extenso
estudo antropológico e psicológico que enriqueceria nossa visão
sobre o tema.
Nosso
despretensioso artigo quis apenas levantar um véu, das centenas, que
cobrem o tema.
V.
Bibliografia citada
MONIER,
M.-WILLIAMS. 2008. Sanskrit-English Dictionary. Varanasi:
Indica Books.
LALANDE,
André. 1999. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia.
São Paulo: Martins Fontes.
STCHERBATSKY,Th.
1996. Buddhist Logic. New Delhi: Munshiram Manoharlal.
[1]
A princípio, ‘nobre’ era quem recebia distinção por atos de
heroísmo militar e serviço em defesa de um povo, de uma família ou
de um domínio. Posteriormente, a nobreza passou a ser hereditária
e, em sua última fase de decadência, podia ser comprada através de
títulos pagos com dinheiro ou favores.
[2]
Literalmente “o que não retorna”, o terceiro estágio dos
quatro tipos de pessoas nobres, arya-pudgala. O título designa
aquele que obteve o estágio anterior ao da quebra total de apegos,
quando se tornará um Arhat.
[3]
Um Buda solitário, ou seja, aquele que realizou a Iluminação
pelos próprios esforços, em isolamento, recluso.
[4]
Derivação da palavra sânscrita “bodhi-sakta”, um ser que está
direcionado à Iluminação. É a corporificação do ideal do
Budismo Mahayana.
[5]
O mais profundo inferno, reservado aos seres mais malignos.
[6]
Um ser cujas trevas interiores são tão densas que impossibilitam
que ele manifeste a sua natureza búdica original.