No
ano de 2015, aos 102 anos de idade, deixou este mundo material,
voltando ao reino espiritual, o grande yogue Chatral Rinpoche, nascido
no Tibet em 1913 e que pertenceu a Escola Nyingma do Budismo
Tibetano. Vivendo em grande simplicidade, humildade e solitariamente, Chatral Rinpoche dedicou sua vida ao iluminado e enobrecedor ideal de compaixão por todos os seres,
praticando seu vegetarianismo e dedicando-se com grande devoção e
fidelidade ao budismo de tradição mahayana. São de sua inspirada lavra estas
iluminadas e compassivas palavras:
“Faça
todo o esforço para não matar qualquer ser vivo: pássaros, peixes,
gazelas, vacas e até mesmo pequenos insetos. Ao invés disto,
ocupe-se de salvar a vida deles oferecendo proteção em face de
todos os perigos. O benefício desta ação está além da
imaginação. Esta é a melhor prática para a sua própria
longevidade. E o mais grandioso ritual para os vivos ou mortos. É a
minha principal prática para beneficiar os outros. Ela dissipa
todos os obstáculos e adversidades externos e internos. Sem esforço
e espontaneamente, traz condições favoráveis. E, quando
inspirada pela nobre mente de bodhichitta e selada com
preces puras de dedicação e aspiração irá levá-lo à completa
iluminação e à realização do seu bem-estar e o dos outros. Disto
você não precisa ter qualquer dúvida!” (1)
Aqueles que desejarem conhecer melhor a vida e a obra de Chatral Rinpoche, seus ensinos, experiências e exemplos, encontrarão excelentes fontes sobre tão marcante, compassiva e inspiradora personalidade.
Assim, nesta feliz oportunidade estamos compartilhando, a partir do excelente blogue budista quietamente.blogspot.com.br, o iluminado texto de Chatral Rinpoche "Sobre Comer Carne", incluindo notas e referências conforme publicadas no referido blogue.
“O
Compromisso Inabalável com a Ética de Chatral Rinpoche
Sobre
Comer Carne
Comer
carne não é permitido de acordo com os três votos: os votos de
liberação individual, os votos de bodhisattva e os votos tântricos.
Assim, Buda afirmou: "Eu nunca aprovei, não aprovo e nunca
aprovarei uma dieta de carne". Ele declarou: "Meus
seguidores não devem comer carne jamais. " 01
Em
geral, tanto o açougueiro quanto quem compra a carne, sofrerão em
tais reinos como os infernos que queimam e fervem.02
No Sutra Lankavatara, o Buda ensinou que "matar animais
por lucro e comprar carne, são ambas más ações; esses tipos de
ações resultarão em um renascimento nos terríveis reinos do
inferno " e “aquele que come carne contrariando as palavras do
Buda é mal-intencionado, (e é) destruidor do bem-estar dos dois
mundos.” O Buda explicou além disso:
Nenhuma
carne pode ser considerada pura, se tiver sido premeditada, pedida ou
desejada, portanto abstenha-se de comer carne. Tanto eu, como outros
Budas, proibimos os adeptos de comer carne. Aqueles seres sencientes
que se alimentam uns dos outros, irão renascer como animais
carnívoros. O comedor de carne é mal-cheiroso, desdenhoso e nasceu
desprovido de inteligência. Ele pertence à classe mais baixa dos
homens. Como os Budas, Bodhisattvas e Shravakas03
condenaram o consumo de carne, aquele que continua comendo
carne, sem vergonha, será sempre desprovido de sentido. Aqueles que
deixarem de comer carne, irão renascer como Brâmanes, sábios e
ricos. Carne que se tenha visto, ouvido, ou suspeita-se ter vindo de
um animal abatido para consumo, deve ser condenada. Teóricos que
nascem como comedores de carne não vão entender isso. Essas pessoas
farão comentários tolos sobre comer carne, dizendo: "A carne é
adequada para comer, aceitável e autorizada pelo Buda." Um
adepto aprecia comida vegetariana em quantidade adequada e vê a
carne como imprópria para consumo, como a carne de seu próprio
filho. Para aqueles que estão residindo na compaixão, eu proíbo a
carne em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Comer carne
é uma situação horrorosa e impede o progresso em direção ao
Nirvana. Abster-se de comer carne é a marca dos sábios.04
No
Sutra Parinirvana, Buda falou para seu discípulo Kashyapa:
Filho
abençoado, aqueles que têm a atenção plena dos shravakas, não
estão autorizados a comer carne de agora em diante. Mesmo que seja
oferecido carne com fé genuína, deve-se vê-la como a carne de
nosso próprio filho.
O
Bodhisattva Kashyapa perguntou a Buda: "Senhor, por que você
não permite que se coma carne?" Buda respondeu:
Filho
abençoado, comer carne prejudica o desenvolvimento da compaixão,
portanto, todos aqueles que seguem o caminho do Buda, não deveriam
comer carne de agora em diante. Kashyapa, onde quer que um comedor de
carne deite, sente ou ande, outros seres sencientes tornam-se
temerosos ao sentir o cheiro dele. Filho abençoado, assim como
quando um homem come alho, os outros se afastarão por causa de seu
mau cheiro, do mesmo modo, quando os animais sentem o cheiro do
comedor de carne, eles temem a morte ...
Kashyapa
perguntou a Buda: "Senhor, como monges, monjas e aprendizes são
dependentes de outras pessoas para a sua alimentação, o que eles
devem fazer quando lhes são oferecidos alimentos com carne?"
Buda respondeu a Kashyapa:
Separe
o alimento e a carne, lave o alimento e depois coma. Você pode usar
sua tigela de mendicância, se ela não tiver o cheiro ou o gosto da
carne, do contrário você deve lavar a tigela. Se a comida tiver
muita carne, não se deve aceitá-la. Não coma alimentos se você
vir que há carne nos mesmos; se você fizer isso irá
acumular não-virtude. Se eu falar minuciosamente sobre as razões de
eu não permitir comer carne, não haverá fim. Eu não permito comer
carne. Eu dei uma resposta breve, pois é
chegada a hora do meu parinirvana.05
Buda
elucidou ainda mais as falhas sobre comer carne no Sutra Angulimala,
bem como no Compêndio dos Preceitos Shikshasamuccaya. Além disso, o
ensinamento terma de Padmasambhava, chamado Rinchin Dronme, condena
claramente o consumo de carne, tanto para leigos, quanto para pessoas
ordenadas: "Todos os seguidores de Buda - monges ou monjas,
aprendizes ou leigos - têm sete princípios fundamentais a seguir.
Estes são: ‘os quatro princípios raiz’06,
a abstinência de álcool, de carne e de alimentos à noite."
Apesar
de alguns poderem argumentar que a condenação da carne pelo Buda,
aplica-se apenas `as sete classes de votos Theravadayana07,
e não está relacionada ao Mahayana e ao Vajrayana, a seguinte
passagem do sutra Mahayana indica o contrário:
Comer
carne é uma dieta que perpetua os três reinos [do Samsara: reinos
do desejo, da forma e da não-forma]. É uma espada que corta o
potencial de liberação. É um fogo que queima a semente do Estado
Búdico. É um raio de relâmpago que dá fim ao renascimento nos
reinos superiores ou a um renascimento humano precioso.
Uma
vez que comer carne não é aprovado para ninguém, - não para
monges, monjas ou leigos - aqueles que são praticantes budistas
comprometidos, não deveriam comer carne nunca. Aquele que tomou o
voto de Bodhisattva, incorrerá em grande falta, se comer a carne de
seres sencientes que foram nossos pais em vidas passadas. Mesmo no
Vajrayana, a carne é proibida até que se alcance a visão última
da percepção pura.08
Trulshig
Pema Düdül Rinpoche, narra uma visão pura que ele teve, após a
qual parou de comer carne para sempre:
O
Grande Compassivo [Avalokiteshvara] apareceu no céu a minha frente e
falou: "Você fez algum progresso no caminho e adquiriu algum
conhecimento, mas você carece de amor e compaixão. A compaixão é
a raiz do Dharma e com compaixão é impossível comer carne. Uma
pessoa que come carne, experimentará muito sofrimento e doença.
Olhe para os miseráveis! Cada um está experienciando o sofrimento
de acordo com seus feitos... Aquele que deixa de comer carne, não
vai experienciar esse sofrimento. Em vez disso, os Budas e
Bodhisattvas, e o guru, deidades e dakinis, irão regozijar-se e
protegê-lo."
Muitos
outros adeptos renomados condenaram a carne como um alimento
venenoso. Machig Labdrön, a legendária praticante de chöd09,
disse: "Para mim, comer carne está fora de questão. Eu sinto
grande compaixão, quando vejo animais indefesos, olhando para cima
com olhos temerosos". Rigzin Jigme Lingpa, um grande iogue da
tradição Nyingma, afirmou:
Assim
como na história de Arya Katyayana indo pedir comida10,
vejo que o animal do qual esta carne veio, foi nossa mãe em vidas
anteriores. Se assim for, podemos comer a carne de nossa própria
mãe, que foi abatida por açougueiros? Imagine quanta preocupação
surgiria! Portanto, se refletirmos sinceramente, de modo algum não
sentiremos compaixão pelo animal.
Algumas
pessoas que afirmam ser praticantes, dizem: "pelo menos um pouco
de carne e álcool é necessário para manter-se saudável, caso
contrário, fraqueza ou morte poderiam ocorrer." Isto não é
verdade. No entanto, mesmo se a morte vier por causa da prática do
Dharma de abster-nos de carne e álcool, isso então valerá a pena.
Como o grande adepto Tsele Rigzin11 disse:
Do
fundo do meu coração eu rezo (para)
Nunca
estar com carnívoros e bebedores.
Nesta
e nas vidas que virão
Possa
um ordenado nunca nascer onde carne
E
álcool são usados sem moralidade.
Mesmo
se eu morrer
Devido
à ausência de carne e álcool,
Eu
estarei vivendo em conformidade com os preceitos do Buda.
Assim
eu serei um praticante genuíno!
O
Bodhisattva Jigme Chökyi Wangpo [Patrul Rinpoche] disse:
Como
Budistas, tomamos o refúgio triplo12.
Para tomar refúgio no Dharma, é preciso praticar a não-violência
para com os seres sencientes. Assim, se continuarmos a comer carne -
a qual veio do abate de animais inocentes - então não é isso uma
contradição dos nossos compromissos budistas?
Conhecendo
todas as falhas do consumo de carne e álcool, eu fiz o compromisso
de abster-me em frente da grande árvore Bodhi, em Bodhgaya, tendo os
Budas e Bodhisattvas das dez direções como minhas testemunhas. Eu
também declarei essa conduta para todos os meus monastérios.
Portanto, pede-se a quem quer que me escute, não transgredir esse
aspecto crucial da conduta ética Budista.
Notas:
01.Sutra
Lankavatara (tib. Lang kar gshegs pa’i mdo)
02.Na
cosmologia budista, há seis reinos de existência samsárica, todos
marcados por seus próprios tipos de sofrimento. O reino dos deuses é
marcado pela preguiça e subseqüente falta de mérito acumulado, o
que leva ao temor de descer aos reinos inferiores ao final de sua
vida longa e luxuosa. Os deuses invejosos (asuras) têm uma vida
exuberante, mas estão sempre brigando por causa da inveja. O reino
humano é marcado pelo sofrimento do nascimento, velhice, doença e
morte; o sofrimento experienciado quando as coisas mudam, o
sofrimento que combina o sofrimento anterior e o sofrimento
resultante da ação negativa anterior. O reino animal é marcado
pela ignorância, os animais não podem falar com outras espécies e
por isso são facilmente explorados pelos seres humanos e estão
freqüentemente em situações indefesas ou temíveis. Os fantasmas
famintos (pretas) têm desejo insaciável e apego, e são descritos
como tendo bocas minúsculas e barrigas enormes, o que os leva a
estar perpetuamente famintos e sedentos. O sexto reino representa a
raiva e o ódio, e inclui oito tipos de infernos quentes, oito tipos
de infernos frios e outros dois tipos de inferno. Chatral Rinpoche
está se referindo aos dois tipos de infernos quentes – o que ferve
e o que queima.
03.Shravaka
é um tipo de praticante de meditação budista, altamente realizado,
de acordo com a tradição Theravayana.
04.Sutra
Lankavatara (tib. Lang kar gshegs pa’i mdo)
05.Parinirvana
refere-se à passagem física do Buda do reino humano, para o estado
da Iluminação perfeita.
06.
Os quatro princípios raiz são, abster-se do seguinte: má-conduta
sexual, matar, roubar e mentir.
07.As
sete classes de votos vinaya são: votos de monge, votos de monja,
votos de monge aprendiz, votos de monja aprendiz, votos
intermediários de monja, votos masculino e feminino para praticantes
leigos.
08.Um
iogue avançado como Tilopa, pode liberar animais como peixes, ao
consumir as partes de seu corpo morto. Outra prática ióguica
avançada, é comer o que normalmente é considerado tabu, vendo isso
como o puro néctar na sua essência. (Nota da revisão de
Shabkar.org: incluindo nisto estão as “cinco carnes”; de
elefante, cachorro, vaca, cavalo e humanos e os “cinco néctares”;
de urina, fezes, cérebro, sangue e sêmen).
09.Chöd
significa “cortar” e é uma prática para a destruição do apego
ao “eu”, através da oferenda de seu próprio corpo, cortado em
pedaços e convertido em puro néctar, como sustento para os
iluminados, os fantasmas famintos, demônios e outros seres
sencientes. É tradicionalmente praticada em cemitérios e
crematórios.
10.
Um dia o arhat Arya Katyayana, enquanto pedia oferendas de alimento,
encontrou um homem com uma criança no colo. O homem comia um peixe
prazerosamente e jogava pedras em uma cadela que tentava pegar os
ossos. Entretanto, o que o mestre viu com sua clarividência foi: o
peixe havia sido o pai do homem naquela mesma vida e a cadela havia
sido a mãe. Um inimigo que ele havia matado em uma existência
passada, tinha renascido como seu filho como pagamento cármico pela
vida que ele tirara. Katyayana exclamou: “Ele come a carne do pai,
bate na mãe, e embala no colo o inimigo que matou; a esposa está
mordiscando os ossos do marido. Dou gargalhadas ao ver o que acontece
no show do samsara! – As Palavras do Meu Professor Perfeito, de
Patrul Rinpoche. Editora Makara.
11.Tsele
Natsok Rangdrol (rTse le sNga tshogs Rang grol, 608-?).
12.“Refugio
triplo” significa tomar refugio no Buda, no Dharma (os ensinamentos
do Buda) e na Sangha (a comunidade dos praticantes).
Parte
do capítulo 2, do livro “Compassionate Action” de Chatral
Rinpoche, editado, introduzido e anotado por Zach Larson. Editora
Snow Lion Publications. USA 2007.
Tradução
do tibetano para o inglês de Geshe Thubten Phelgye e Aaron Gross,
revisado por Zach Larson. Tradução do inglês para o português de
Marcelo Saula, revisado por Pema Chödren.
Traduzido
e publicado com a permissão de Zach Larson. Abril de 2011.” (2)
Belíssimo mantra de Avalokiteshvara, o Buda da grande compaixão
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=6Pev6QXhmlk
Referências:
(1)
http://www.shabkar.org/download/pdf/Benefits_of_Saving_Lives.pdf