Por Andrew Linzey
Revisão
: Eliana Moser
A
primeira edição do Animal
Gospel
[Evangelho animal] de Andrew Linzey data de 1998 (editora Hodder &
Stoughton). Podemos encontrar esta obra (em inglês) publicada em uma
edição de 2000 (Westminster John Knox Press, Kentucky, EUA).
Agradecemos a Andrew Linzey pela autorização concedida para que
pudéssemos traduzir e publicar trechos do Animal
Gospel
que vocês encontrarão abaixo.
Capítulo
1
Verdades
evangélicas sobre os animais
Creio
que o Evangelho tem a ver com a maneira como compreendemos e tratamos
os animais. Acreditar no Evangelho pode e deve fazer uma diferença
em nossas interações cotidianas com outras criaturas. Neste
capítulo exponho opiniões pessoais sobre as verdades evangélicas
que fortificaram meu engajamento pelos animais durante mais de vinte
e cinco anos.
Por que
me dirijo em direção a Jesus? Enquanto tantos outros olham em
outras direções, por que para mim ele representa uma inspiração
na luta pelos direitos dos animais? Por que não Darwin e a história
da evolução? Ou Albert Schweitzer e sua noção de respeito pela
vida que é permanentemente amplificado? Ou mesmo São Francisco de
Assis e sua afirmação que os animais são nossos irmãos e irmãs?
Enquanto outras pessoas, cristãs ou não, não vêem a relação, o
que me leva a proclamar Jesus Cristo como fonte de inspiração - na
verdade como a
fonte de inspiração - por uma reconsideração revolucionária do
estatuto dos animais?
Não
tenho outra escolha, confesso minha fé, noto o que me anima, me
inspira e cria em mim um tipo de convicção íntima que estar ao
lado de Jesus é lutar contra os maus tratos infligidos aos animais.
Eis os meus cinco artigos de fé:
Em
primeiro lugar, estar com Jesus [to
stand for Jesus]
é defender os animais contra todas as concepções puramente
humanistas ou utilitárias que fazem deles objetos, mercadorias,
recursos à nossa disposição. Penso algumas vezes que a
contribuição mais importante do Evangelho para o nosso modo de
pensar o mundo resida na simples asserção que não somos Deus.
Retomando as palavras de Hans von Balthasar que citei várias vezes:
"Com relação à criação, o que é essencial é que saibamos
que não somos o Criador". Afirmar que os animais são criaturas
assim como nós o somos é rejeitar, de forma definitiva, a
deificação de nossa espécie, tão característica das concepções
humanistas de nossas prerrogativas sobre as outras espécies.
Com
muita freqüência, os cristãos aceitaram a opinião profana comum
segundo a qual nós somos os donos dos animais, somos seus soberanos
e proprietários - esquecendo totalmente que a dominação permitida
ao homem é uma dominação por delegação, na qual devemos nos
comportar, face à criação como representantes de Deus, agindo de
acordo com a lei divina de amor e de compaixão e não segundo nossos
próprios desejos egoístas1.
Entretanto, quando começamos a questionar o tratamento despótico
imposto aos animais - quer seja a matança realizada por esporte, a
brutalidade do comércio de exportação ou (para citar o último
exemplo da atualidade) o massacre absolutamente obsceno das focas
para pegar seus pênis e vendê-los como afrodisíacos na Europa e na
Ásia - confrontamo-nos cada vez mais com o dogma humanista: se é
uma vantagem para a humanidade, então isso deve ser visto como bom.
Pensar
assim — e é incontestável que os cristãos também pensaram deste
modo — revela um empobrecimento espiritual fundamental. Pois se os
animais são criaturas de Deus, não temos nenhum direito absoluto
sobre eles, apenas o dever de cuidar deles assim como Deus o faria.
Estar ao lado de Jesus é recusar nossa concepção de nós mesmos
como deuses e donos da criação. Devemos honrar a vida reverenciando
o Senhor da vida.
Em
segundo lugar, estar com Jesus é ser favorável à compaixão ativa
com relação aos fracos, contra o princípio da lei do mais forte. E
eu não falo deste tipo de gentileza afável que se assemelha
freqüentemente à compaixão, mas desta coisa plena de vigor que é
um sinal bíblico de regeneração moral. Segundo as Epístolas aos
Colossenses, os cristãos se "desnudaram do homem antigo e de
suas obras" e "revestiram o homem novo, que se renova
constantemente [pelo Cristo] segundo a imagem de seu Criador". E
nos pedem de vestirmos "as roupas que convêm aos eleitos de
Deus, santos e bem amados: a compaixão, a bondade, a humildade, a
doçura, a paciência2".
São as roupas evangélicas para as pessoas do Evangelho. Com estes
pensamentos na alma, não caçoemos nem mesmo ousemos esboçar um
sorriso sarcástico na direção das pessoas que sentem os
sofrimentos das criaturas de Deus, quer sejam elas humanas ou
animais. A verdade do Evangelho é que recebemos da graça divina o
poder de sentirmos o sofrimento alheio; que possamos sentir isso é o
coroamento do Cristo em nós. É chocante escutar cristãos
qualificar com sarcasmo de "sentimentalóides" aqueles que
se preocupam com os animais. O que estas pessoas teriam falado sobre
a compaixão de Jesus para com todos aqueles que estavam fora do
círculo normal das pessoas com as quais era normal se preocupar? Os
pobres, os doentes, os marginais e até mesmo as prostitutas e os
coletores de impostos. Sabemos o que eles disseram: uma das censuras
feitas pelas pessoas religiosas era sobre o fato de Jesus ter amizade
com eles3.
Em nossos dias a união com Cristo implica a expansão de nossa
sensibilidade moral a tal ponto que isso constitui uma afronta e uma
ameaça para aqueles que detêm o poder, do mesmo modo que a
compaixão de Jesus representava uma ameaça para os poderosos de seu
tempo. [...]
Em
terceiro lugar, ter Jesus é defender a inocência dos animais,
semelhante à do Cristo, contra o mal intrínseco da crueldade.
Vivemos tanto tempo com as histórias evangélicas de Jesus que,
freqüentemente, somos incapazes de ver como sua vida e seu
ministério identificam-se com os animais. Ele nasceu na casa do
carneiro e do boi. Seu ministério começou no deserto "entre os
animais selvagens4".
Sua entrada triunfal em Jerusalém foi feita sobre um animal de
carga5.
Segundo
Jesus (podemos deduzir), é permitido "fazer o bem" durante
o Sabbat, inclusive para socorrermos um animal que tenha caído em um
buraco6.
Até os pardais, que eram vendidos por alguns centavos, no tempo de
Jesus não são "esquecidos por Deus". A providência
divina se estende a toda criação, e a glória de Salomão e de toda
sua obra não pode ser comparada à da flor de lis nos campos7.
Deus cuida tanto de sua criação que até as "raposas têm
tocas e os pássaros do céu têm ninhos", ainda que "o
Filho do Homem [não tenha] um lugar para repousar a cabeça8"
Mas a
identificação mais significativa é a do Cristo ao "Cordeiro
de Deus9".
Como notou o cardeal Newman em um sermão de 1842, as Escrituras
comparam Cristo a um animal humilde e sem defesa. Explorando esta
metáfora, ele chegou a postular que a inocência dos animais
assemelha-se à do Cristo e afirmou que a crueldade praticada contra
todos os inocentes - sejam estes crianças ou animais - equivale
moralmente a exercê-la contra o próprio Cristo.
O
sofrimento animal representa o sofrimento inocente, desmerecido de
Cristo. Os Cristãos cujos olhares focalizam o horror da crucificação
deveriam ser capazes de compreender o horror do sofrimento inocente.
Tal sofrimento, seja ele dos membros mais fracos da comunidade humana
ou dos animais, clama ao céu por julgamento e redenção. A cruz de
Cristo engloba o sofrimento de toda criação; nossa sensibilidade a
este sofrimento é um teste de papel "tournesol"10
que evidencia nossa qualidade como discípulos cristãos. Afirmo que
qualquer teologia que nos insensibilize com relação ao sofrimento
não pode ser uma teologia cristã.
Em
quarto lugar, estar do lado de Jesus é ser favorável a um
sacerdócio de reconciliação de toda criação, contra os poderes
da escuridão, representados em parte, pelo caráter destruidor da
tecnologia humana. "Pois, escreveu Paulo, Deus quis que toda
plenitude habitasse nele; ele quis reconciliar tudo consigo mesmo,
tanto o que está sobre a terra como o que está nos céus, fazendo a
paz através de si, pelo sangue de sua cruz11".
No
passado, os cristãos nunca tentaram saber como poderiam compartilhar
este sacerdócio da reconciliação e, em particular, o que seria
necessário fazer neste contexto cósmico. Mas uma coisa é clara: o
que aconteceu na cruz possui um significado cósmico. As Epístolas
aos Colossianos e aos Efésios não podem ser lidas como a afirmação
de uma teologia puramente antropocêntrica. Somos convidados a
examinar onde a criação ainda não está reconciliada com Deus.
Atingimos
aqui uma nova cruzada onde os caminhos dos cristãos e dos não
cristãos se separam. Para estes últimos, não houve queda, nem de
humanos nem do que quer que seja. O mundo simplesmente é "como
ele é" e nós devemos estar reconciliados com ele tal como ele
é. Mas o verdadeiro evangelho diz que não devemos aceitar o mundo
como ele é. Nós devemos distinguir a criação da natureza. O mundo
da natureza é ainda inacabado. Na prática isso significa que os
cristãos não podem simplesmente deduzir do mundo que ele será como
ele é ou o que ele deveria ser.
Este
ponto de vista é absolutamente fundamental para todos aqueles que
querem explorar os animais (infelizmente tanto os cristãos quanto os
profanos) e que estão dispostos a considerar o mundo como um manual
de moral, de modo que os humanos tenham direito de imitar todas as
relações de subordinação, de indiferença ou de parasitismo que
eles possam encontrar. Entretanto a verdade evangélica é que a
história de Jesus não é a história do Cristo nosso Predador. O
mundo da predação e de todo sofrimento e a morte que o acompanham
se erguem contra o Evangelho do amor de Deus.
Os
cristãos encarregados do sacerdócio de reconciliação de toda
criação devem se tornar símbolos credíveis do Evangelho ao qual
todas as criaturas aspiram. Isto significa que, por mais
irreconciliável que a natureza possa parecer, os cristãos não
podem invocar "a antiga natureza" para justificarem a
exploração atual; mas o inverso deve ser feito. Devemos lutar
contra os poderes que exploram ou degradam as criaturas de Deus - em
particular nosso próprio poder tecnológico que reduz os animais a
mercadorias ou a coisas.
A
destruição automatizada, institucionalizada, rotineira de milhares
de criaturas que acontece a cada ano, para a alimentação, para a
obtenção de lucro, para a ciência e o esporte nos leva a perguntar
se os cristãos perderam a consciência da realidade do mal. Os
direitos dos animais são um combate espiritual contra as forças da
crueldade e da morte.
Enfim,
estar do lado de Jesus é ser favorável à justiça de Deus e à
liberação final de toda criação, é ser a favor do fim da
servidão da corrupção, contra o desespero moral e a prostração
que caracterizam nosso tempo.
Eu não
acredito na "autonomia da ética". Pois esta não pode
estar dissociada de uma visão teológica. E sem essa, a ética
morre. Nas crises ecológicas do nosso tempo, nós os humanos,
estamos aprendendo essa dura lição que nos traz conseqüências
incalculáveis (em termos de sofrimento apenas) para o mundo não
humano. Acreditar em Jesus é acreditar que o universo é amado e
abençoado por Deus. O universo não é perfeito, mas ele está no
caminho da reconciliação e será finalmente redimido [redeemed].
Toda criação geme e sofre, esperando a revelação que virá dos
filhos de Deus que a ajudarão a liberar-se da servidão e da
vaidade12.
Para
mim, não há tarefa que se assemelhe mais à do Cristo do que a de
liberarmos a criação desta servidão, "pois nesta esperança
somos salvos". Estar com Jesus é entrar nos objetivos de Deus
que englobam bem mais do que a salvação da humanidade, por mais
vital que esta seja, mas não apenas para a humanidade.
Quando a
imagem divina, ainda que desfigurada pela violência e o pecado
humanos, é renovada através do Cristo, novas possibilidades se
abrem para a criação. Cuidar dos animais, salvá-los de nossa
impiedade e de nossa avidez é uma tarefa evangélica, pois proclama
o Evangelho. O Evangelho baseia-se na lealdade e na justiça de Deus
que, contra todas as aparências, não nos abandonará - nem a nós
nem à criação. E é por isso que precisamos de mais, de muito mais
"sentimentalismo" com relação aos animais. A condição
deles está inextricavelmente ligada à nossa plena humanização em
Cristo.
Estas
palavras podem parecer, em nossos dias, credulidades. Para dizer a
verdade, vários cristãos abandonaram a idéia evangélica de
redenção de toda criação. O máximo que são capazes de imaginar
é uma humanidade salva e melhorada; o resto da natureza (como ela é)
é o melhor que cada um possa imaginar que seja. Caricaturando um
pouco esta posição (apenas um pouco): Cristo pode apenas conseguir
realizar a tarefa da redenção da espécie humana. E, brincando,
eles acrescentam que o paraíso teria que ser muito grande para
conseguir conter todos os animais.
Mas a
questão verdadeira não é saber se nossa representação do paraíso
é bastante grande, mas de saber se nossa visão de Deus o é. A
verdade é que um novo céu e uma nova terra que não possam englobar
a redenção de todas e de cada uma das criaturas que sofrem, não
são bastante grandes para o Deus de justiça no qual os cristãos
crêem. Se, segundo os termos de Michael Ramsey, "Deus é
parecido com Cristo, e nada há nele que não seja parecido com
Cristo13",
é inconcebível que Deus, o Pai, possa ser menos misericordioso que
o Filho.
Recentemente,
o diretor do Expository
Times
me acusou de "incapacidade de enxergar as realidades do mundo
natural14".
Ingenuamente eu compreendi o que ele disse como um elogio até que um
colega me esclareceu. Ser incapaz de enxergar as realidades deste
mundo me parece ser o ponto de partida necessário para o cumprimento
da ética cristã.
A ética
cristã é essencialmente escatológica: ela aponta em direção a um
outro mundo além deste aqui. A minha crítica significava que eu não
partilhava sua
percepção
do que é dado por Deus (e, por causa disso imutável) no mundo
presente. Nossa fé em Deus é freqüentemente ligada a uma visão do
mundo que fixa limites arbitrários ao que Deus realmente pode fazer.
É
próprio da "natureza humana" como do resto da "natureza"
o fato de termos nossos limites e por isso supomos que Deus não
possa, ou não queira ultrapassá-los. A doutrina bíblica da
redenção mina os fundamentos de nossas tímidas concepções da
providência divina. O Deus de Isaac, de Jacó, de Abraão e de Jesus
não é limitado pelo que nós sabemos sobre biologia elementar. Se o
que foi revelado em Jesus é eternamente verdadeiro com relação à
natureza de Deus, então a mesma mão que cura os leprosos também
transforma o universo por inteiro.
A
questão "O que somos dentro da criação?" deve ser
pensada com urgência. Se os cristãos e as Igrejas pudessem retomar
uma nova confiança em sua própria teologia evangélica, poderíamos
mostrar a nossos contemporâneos uma visão do que deveria ser a
criação e um sentido dos limites morais que lhe correspondesse.
Karl Barth escreveu: "Diga-me como está sua cristologia e direi
quem você é15".
Pode ser que o que acreditamos em relação a Cristo seja muito mais
importante para o futuro das outras criaturas de Deus do que possamos
imaginar.
Isso
significa profundamente que os animais não devem ser considerados
como mercadorias, como recursos, instrumentos, objetos úteis à
disposição dos humanos. Se queremos viver a fundo a teologia real,
devemos abandonar as concepções puramente antropocêntricas
relativas aos animais. A questão da utilidade que os animais podem
ter para nós é totalmente distinta do valor que eles possuem aos
olhos de Deus todo poderoso. Afirmar que o valor e o significado dos
animais neste mundo possa se reduzir ao valor e significado que têm
para os seres humanos é totalmente contrário à teologia. Insisto
neste ponto, pois parece que existe uma opinião errada em voga - e
ela está particularmente disseminada entre os defensores doutrinais
da fé cristã: a opinião segundo a qual a melhor expressão da
ética teológica consiste em um humanismo lúcido e bem
intencionado. E não é assim. A procura de uma compreensão
teológica deve implicar uma ruptura fundamental com o humanismo,
profano e religioso. Apenas Deus é a fonte de valor de todos os
seres vivos.
As
pessoas opõem, habitualmente, a este argumento a idéia que, se for
realmente assim, pode-se deduzir que toda criação tem valor, de
modo que não podemos dizer que haja mais ou menos valor nos animais
ou nos rochedos ou nos vegetais, sem falar dos insetos e dos
vírus.Este argumento parece cada vez mais utilizado pelos
"ambientalistas" e "pensadores verdes" que
desejam recusar aos animais uma consideração moral particular. Eles
afirmam que o valor dos animais é, por conseguinte, o que nós lhes
devemos e deva realmente ser colocado no mesmo plano que o valor dos
outros objetos naturais como as árvores ou os rios. Compreendemos
imediatamente como esta idéia se insere bem na visão ecologista das
"interdependências holísticas" e nas exortações
holísticas para respeitarmos "a terra como um todo". Deus
ama a criação inteira de modo holístico, dizem as pessoas21.
Mas é
verdade que Deus ama tudo da mesma maneira? Eu não acredito. A
tradição cristã distingue claramente os humanos dos animais e
também os animais dos vegetais. Os pensadores que desejaram
estabelecer a preeminência dos humanos nas Escrituras simplesmente
negligenciaram o modo como os animais existem ao lado dos humanos no
círculo da relação de aliança. O espírito é, ele mesmo, o
"sopro da vida" (Gênesis 1: 30) tanto dos homens como dos
animais. A Tora inclui os animais em sua noção de comunidade moral.
Assim, depois de ter percorrido o modo como os animais são
especificamente associados, identificados aos humanos, Bath conclui:
"O "Tu, Senhor, preservas os homens e os animais".
(Salmos 36: 6) que é um tema que percorre toda Bíblia; e surge de
forma evidente quando a criação do homem é classificada no Gênesis
1: 24 com a dos animais terrestres22".
Uma
outra maneira de criticar meu argumento consiste em afirmar que,
ainda que os animais tenham algum valor, este valor é
incontestavelmente inferior ao valor especial dos humanos. Mas esta
objeção somente alimentaria minha tese. Eu não procuro negar que
os humanos sejam únicos e até mesmo "superiores" em um
sentido, ou que eles tenham um "valor especial" na criação.
Certos defensores profanos dos direitos dos animais argumentaram, é
verdade, de forma que parecem eclipsar o caráter único da
humanidade. Mas os defensores cristãos dos direitos dos animais não
procuram destronar a humanidade. Ao contrário, a tese dos direitos
dos animais exige que recoloquemos a humanidade em seu trono.
A
questão crucial é: que tipo de rei deve ser recolocado no trono? As
asserções de Gummer mostram bem a que ponto a "dominação"
chega a significar nada menos nada mais que o despotismo. Mas a regra
real da qual somos, segundo o Gênesis, os representantes ou
guardiões, não é o regime brutal de um tirano. Deus elegeu a
humanidade para representar e realizar a vontade divina e amorosa
para todas as criaturas. A humanidade é a única espécie que foi
escolhida para tomar conta do jardim cósmico (Gênesis 2: 15). Isso
implica ter o poder sobre os animais. Mas a questão não é saber se
temos o poder sobre os animais, mas como devemos exercê-lo.
E é aí
que atingimos a encruzilhada dos caminhos. Os profanos podem afirmar
que o poder é em si mesmo uma justificativa para o uso que nós
fazemos dele. Mas os cristãos não são tão livres assim. Nenhuma
invocação do poder de Deus pode ser suficiente sem que se faça
referência à revelação deste poder exemplificado em Jesus Cristo.
Muito do que Jesus disse sobre os escravos, as mulheres ou os animais
continua historicamente opaco. Mas conhecemos as grandes linhas ainda
que faltem muitos detalhes. O poder de Deus em Jesus se exprime na
katabasis,
a humildade, o sacrifício de si, a ausência de poder. O poder de
Deus é redefinido em Jesus como um serviço concreto e caro que se
estende aos que estão fora do circulo normal da consideração
humana: os doentes, os pobres, os oprimidos, os párias. Se os
humanos devem reivindicar uma supremacia sobre a criação, então
esta superioridade tem que consistir em servir. Não pode haver
superioridade sem serviço.
Segundo
a doutrina teológica dos direitos dos animais, a espécie humana
deve ser a espécie que presta serviço - a espécie à qual foi dado
o poder, a possibilidade e o privilégio de se doar e de se
sacrificar pelas criaturas sofredoras mais frágeis. Segundo
Sullivan23,
as igrejas devem recusar "toda asserção de equivalência moral
entre os humanos e os animais". Mas, quanto a mim, eu nunca
reivindiquei alguma igualdade moral estrita entre humanos e animais.
Sempre fiquei incomodado com o ponto de vista de Singer segundo o
qual a liberação animal consiste em aceitar uma "consideração
igual de interesses" dos animais e dos humanos24.
Penso que, o que devemos aos animais é mais do que uma igualdade de
consideração, atenção ou tratamento. Os pobres, os que não têm
poder, os desfavorizados, os oprimidos, não deveriam ter uma
igualdade prioritária moral, mas uma maior prioridade moral. Quando
nós socorremos os últimos, socorremos Cristo. Seguir Jesus é
aceitar o axioma segundo o qual os fracos são moralmente
prioritários. Nosso valor especial enquanto espécie consiste em
sermos especialmente valorosos para os outros.
A
pertinência de tal teologia para os direitos dos animais deveria ser
clara. Os leitores terão notado que empreguei aqui a expressão
"direitos dos animais" em vez de "bem-estar animal"
ou "proteção animal". Certos cristãos consideram ainda a
terminologia dos "direitos" como uma importação profana
da teologia moral. Eles não têm razão. A noção de direitos foi
empregada, pela primeira vez, em contextos explicitamente teológicos.
E os direitos dos animais são claramente um problema de teologia
moral cristã pela seguinte razão: a escolástica católica rejeitou
especificamente e de modo repetido os direitos dos animais. É a
tradição e não aqueles que chamamos seus detratores modernos que
insiste na pertinência da noção de direitos. O problema se
complica em nossos dias, pois, inconscientes quanto à história, os
cristãos querem falar francamente dos direitos humanos, mas ficam
evasivos quando falamos dos animais.
Para
mim, o fundamento teológico dos direitos tem uma grande força de
convicção. Deus é a fonte dos direitos; todo debate sobre os
direitos dos animais conduz aos direitos do Criador. Por isso em
Christianity
and the Rights of Animals,
eu utilizei o termo feio, mas eficaz: téodireitos25.
A linguagem dos direitos dos animais conceitualiza o que é
objetivamente atribuível ao Criador dos animais. Do ponto de vista
teológico, os direitos não são concedidos, ganhos ou perdidos, mas
reconhecidos. Reconhecer os direitos dos animais é reconhecer o
valor intrínseco da vida dada por Deus. [...]
Capítulo
9
O
sonho que nos anima
[...]
Não há tarefa mais urgente do que tornar nosso sonho ao mesmo tempo
realizável e inteligível. E qual é nosso sonho? É um sonho
profundamente ancorado na tradição judaico-cristã, um sonho ainda
capaz de excitar a imaginação e de reforçar nossa vontade. É um
sonho de paz, segundo Isaías, um sonho de um tempo no qual:
O lobo
habitará com o cordeiro,
E o
leopardo se deitará junto ao cabrito,
O
bezerro, o leão novo e o animal cevado26
andarão juntos,
E um
pequenino os guiará.
A vaca e
a ursa pastarão juntas,
E as
suas crias juntas se deitarão;
O leão
comerá palha como o boi.
A
criança de peito brincará sobre a toca da áspide,
E o já
desmamado meterá a mão na cova do basilisco.
Não se
fará mal nem dano algum
Em todo
o meu santo monte,
Porque a
terra se encherá do conhecimento do SENHOR,
Como as
águas cobrem o mar27.
Tal é
então a visão de paz - a paz não somente entre os humanos e os
animais, mas também entre todos os animais. O que os autores
bíblicos exprimem aqui - e em outras passagens importantes do
Gênesis, de Oséas, de Jeremias, de Amós, dos Salmos, dos,
Colossenses, dos Romanos, dos Efésios e do Apocalipse - é a
convicção que a vontade original de Deus para a criação é a
ordem, a harmonia e a paz.
Imagine
um mundo diferente: um mundo de coexistência pacífica entre todas
as espécies. Um mundo onde haja lugar para todos e onde cada
necessidade seja satisfeita. Um mundo pleno de vida, onde cada
criatura viva protegida da violência. Um mundo onde os seres humanos
reflitam de modo evidente a glória de Deus. Um mundo onde os humanos
tomem conta do mundo, sabendo que ele é a propriedade de Deus e por
isso um tesouro sagrado. Um mundo onde tudo seja bento e glorifique
Deus através da vida. Um mundo transfigurado pela ação de graça
do Sabbat, no qual os humanos precedam às outras criaturas somente
no culto e na glorificação reconhecida e reverenciosa de Deus. Um
mundo onde todas as criaturas, animadas e inanimadas, que sintam ou
não, humanas e não humanas, existam em perfeita unidade diante de
seu Criador.
Este
mundo é aquele descrito no capítulo 1 do Gênesis. Deus cria toda
vida, oferecendo a terra para que todas as formas de vida a partilhem
(1: 10-25). Os humanos são feitos à imagem de Deus e encarregados
de dominar (1: 26-28). Entretanto a dominação não significa a
tirania, mas a responsabilidade. Enfim, os humanos recebem ,assim
como os animais, a injunção de serem vegetarianos, de viverem sem
violência (1: 29-30). Por esta razão, Deus "contemplou toda a
sua obra, e viu que tudo era muito bom" (1: 31). Pode ser que o
capítulo 1 do Gênesis não seja uma descrição do
que foi,
mas do que
está por vir.
Eis o
que é, para mim, nosso sonho. [...]
Capítulo
16
Um
sacerdócio semelhante ao do Cristo para as outras criaturas
[...]
Ainda que a ação do Espírito Santo não dependa das igrejas, e que
estas tenham frequentemente contrariado os designos divinos, elas
podem - inclusive contra sua própria vontade - mostrar sinais de
vida espiritual e ser um agente da graça de Deus. Então eu gostaria
de concluir sugerindo algumas medidas que elas podem adotar para
apoiar este processo global de transformação espiritual. Três
esferas estão implicadas: o culto, o evangelho e o ministério.
Em
primeiro lugar, o
culto.
Talvez alguns não compreendam imediatamente em que sentido o culto
cristão possa ter uma importância direta para o futuro da liberação
animal. Na verdade esta importância consiste simplesmente no fato
dos humanos não serem Deus. Ao celebrarmos o Criador, reconhecemos
que somos criaturas. Esta idéia tão simples tem implicações
revolucionárias em uma sociedade onde as necessidades, os desejos,
as aspirações e ganhos dos humanos são considerados como provas de
todo progresso moral. Não podemos e não seremos capazes de resistir
aos apelos da idolatria, pelo menos a longo prazo, a não ser que
estejamos engajados no culto do único e verdadeiro Deus. Confesso
estar de acordo com Malcolm Muggeridge: "os selvagens que se
prosternam diante de uma pedra pintada sempre me pareceram mais
próximos da verdade do que todos os Einstein ou Bertrand Russel28".
O ato de celebrar um culto é um ato de reconhecimento de um direito
de ordem superior - pois "ao Senhor pertence a terra e tudo o
que nela está29".
Todavia
o problema vem do fato que grande parte do culto cristão continua
sendo fortemente antropocêntrico, quer dizer, centrado nos humanos.
Inclusive a própria atividade que deveria nos liberar da preocupação
exclusiva conosco, contribui com freqüência para alimentá-la. A
razão é simples: o mundo da criação e, em particular os animais,
são invisíveis em nosso culto. Adoramos o Criador como se o resto
da criação não existisse.
Claro,
em um sentido tudo pode ser visto como parte de um culto.
Conceitualmente pelo menos, ele nos leva a dirigir nosso olhar além
dos confins de nossa própria espécie. Mas a forma, a linguagem e a
estrutura da liturgia estão focalizadas em nós, como se fôssemos a
única espécie amada por Deus, a única com a qual ele se preocupa.
Que ninguém se engane sobre o sentido de minhas palavras: é muito
importante, vital, que os humanos orem pedindo perdão, se arrependam
de seus pecados e recebam de volta o alimento e a segurança
espiritual. Realmente Deus nos renova. Mas às vezes é como se nós
adorássemos Deus e tampássemos nossos ouvidos às glorificações
mais vastas das criaturas de Deus.
Glorificar
Deus não é uma atividade exclusivamente humana. No fundo é o
Espírito que ora através de nós. Mas não apenas através de nós.
O Espírito que vive na criação inspira as glorificações de todos
os seres criados. É tão comum escutarmos estes salmos que falam de
forma tão eloqüente da criação que adora, e em seguida voltarmos
para nossos cultos tão profundamente centrados em nós mesmos.
O
critério do culto não reside somente no fato que nos sintamos
alimentados e elevados; ele também está no fato de termos celebrado
a criação, de a termos apreciado (no verdadeiro sentido do termo),
de nos sentirmos mais entusiasmados com ela, de termos dado graças
por sua existência, e de ter feito tudo isso sabendo que nós -
assim como toda a criação - somos sustentados pela mão
providencial de Deus. Não pode ser algo bom nos abstrairmos da
criação no ato de reconhecermos nosso Criador comum.
Há
alguns anos, eu pensava que o culto cristão evoluiria
inexoravelmente em direção a uma consciência maior do nosso
caráter comum de criaturas. Mas agora vejo que isso se produzirá
quando houver uma transformação na liturgia: tornando visível o
que a liturgia normal torna invisível. Com esse objetivo, comecei a
compor orações, litanias, liturgias eucarísticas e serviços para
os doentes. Todas essas obras enfatizam precisamente a preocupação
de Deus para com todas as criaturas e, conseqüentemente, nosso dever
de também cuidarmos delas. Meu livro Animal
Rites
pode parecer provocante, mas é apenas uma tentativa para insistir no
que se perdeu ao longo da história do desenvolvimento litúrgico30.
Para
introduzir os animais no culto, poderíamos até trazê-los a nossas
cerimônias. Há alguns anos, eu produzi para a RSCPA um livro de
ofício para o bem estar animal31.
Hoje ele está em sua quarta edição e é usado por inúmeras
paróquias que organizam uma vez por ano uma celebração com
animais, convidando-os literalmente à igreja, a fim de lembrar aos
cristãos que os animais também possuem um Pai no céu. Porque os
animais foram excluídos por tanto tempo, fazê-los entrar na igreja
tem um significado simbólico evidente. Para alguns padres e
paroquianos, claro, este ofício é uma novidade ainda considerada
com certo desdenho ou até com sarcasmo. Mas ele pode ter um objetivo
vital: fragilizar a idéia que o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó
e de Jesus se preocupa apenas com a espécie humana.
Claro
que, às vezes, os animais criam certa confusão. Mas trata-se de uma
bagunça simbólica. Os animais criam uma confusão em nosso culto
centrado em nós mesmos: eles nos oferecem um esboço da criação
dando graças, um preâmbulo do Sabbat eterno. Os "cultos
animais" ou "ritos animais" são, atualmente,
essenciais para reequilibrar a balança: para nos ajudar a melhor
percebermos nossa condição comum de criaturas e provocar em nós um
sentimento de respeito e admiração pelo mundo que Deus fez.
Alguns
cristãos ficam amedrontados com essa evolução, temendo que o
"culto animal" se reduza a isso: a adoração da criatura
em vez da adoração do criador. Mas, na verdade, é exatamente o
inverso da idolatria que temos em mente. Até que possamos operar a
ruptura litúrgica libertadora através da qual nosso culto abraçará
toda criação, seremos condenados a uma espécie de chauvinismo que
perpetue a idolatria humana. Levo este último ponto a sério: não
devemos, não ousamos supor que Deus o Criador se preocupa apenas com
a espécie humana. Nossos interesses não são em
si mesmos
os interesses do Criador. Deus é o criador de todas as coisas: se
não achamos o modo de mostrar esta verdade em nosso culto, corremos
o risco de diminuir o ato do culto divino. Resumindo, nós devemos
glorificar a vida por causa do Senhor da vida.
A
negligência simbólica das outras criaturas em nosso culto religioso
tem por corolário a recusa de suas presenças onde se realiza o
culto. Há alguns anos, um importante jornal religioso relatou que,
por causa da nova legislação britânica, a destruição rotineira
dos morcegos nas igrejas não mais seria legal. Como os morcegos
frequentemente fazem seus ninhos nos tetos das igrejas, a legislação
incluía, claro, os prédios religiosos, pois eles constituíam um
dos raros refúgios que restavam para uma espécie em declínio.
Houve uma imensa luta que conduziu à constituição de uma
associação de fiéis que se opunha à preservação dos morcegos, e
isso revela a que ponto numerosos cristãos estão pouco esclarecidos
com relação aos animais32.
Nenhum dos autores do correio dos leitores perguntou se oferecer um
abrigo a criaturas não humanas poderia ser um ato de compaixão
cristã. O tema não é insignificante. Muitas igrejas dotadas de
vastos terrenos, especialmente no campo, têm uma oportunidade
excepcional de contribuir para a preservação das espécies
ameaçadas. Na realidade, as igrejas e as catedrais organizam
regularmente a eliminação de milhares dos indivíduos de espécies
"nocivas", em particular dos pombos, sem mesmo pensar em
outros métodos de controle das populações, nem mesmo se perguntam
se tal controle é realmente necessário33.
Devemos
então perguntar que tipo de Deus estes cristãos cultuam. Parece que
fazem seus cultos a uma divindade unicamente interessada na
preservação dos edifícios religiosos, ainda que esta custe a
extinção de certas criaturas de Deus.
A
segunda esfera que desejo abordar é a do próprio Evangelho.
Se o culto cristão é antropocêntrico, a predicação do Evangelho
também o é. Já expliquei no capítulo 2 o que a essência deste
Evangelho testemunha com relação ao amor de Deus para toda sua
criação. Entretanto seria difícil para qualquer pessoa que observa
o apostolado cristão crer que é realmente o caso, pois geralmente
estes textos fundamentais das Escrituras são interpretados de
maneira antropocêntrica. Nas interpretações, não se recorda o
amor de Deus pelo mundo, mas seu amor pela humanidade. O fato é que,
após mais de vinte anos de sacerdócio cristão eu não me lembro de
ter escutado um único sermão sobre o amor de Deus pelo cosmo. A
triste verdade é que o amor inclusivo de Deus se tornou uma verdade
perdida no apostolado cristão.
E a
conseqüência é o empobrecimento do ensino cristão. Lembro-me bem
de C.S. Lewis quando disse que um dos primeiros obstáculos para que
ele aceitasse o cristianismo foi a aparente anomalia de um Deus que
criou um vasto universo, mas se interessou apenas por um planeta. Uma
grande parte da proclamação contemporânea do Evangelho é
lamentavelmente chauvinista: ela supõe implicitamente que o Deus que
nos criou se interessa pelo resto da criação apenas como decoração
ou teatro. Isso não torna Deus mais plausível, mas o inverso. Por
que Deus teria criado um universo inteiro e, no fundo, seria
indiferente a ele?
Compreender
a natureza inclusiva e englobadora do Evangelho - da boa nova do amor
de Deus - continua sendo um formidável desafio para a Igreja. Uma
das primeiras obras de apologéticas que lembro ter lido se
intitulava Se
o Teu Deus é muito pequeno,
de J. B. Phillips. O principal ponto de seu argumento ficou presente
em meu pensamento (seu argumento é que tentamos incessantemente
limitar Deus, reduzí-lo ao nosso tamanho, fazê-lo menor do que ele
é). É a "pequenez" do pensamento cristão com relação
ao universo que o torna intelectualmente problemático. Claro que o
apostolado cristão deve tratar de modo adequado os grandes temas do
pecado humano e da salvação, mas ele não deve nunca supor que Deus
se reduz à relação que mantém conosco - como se, quando tratamos
desta relação, e de outros temas humanos, tivéssemos dito tudo o
que havia para ser dito. O Deus do Evangelho cristão não é
simplesmente redutível aos interesses temáticos, necessidades ou
ganhos humanos.
Mas o
desafio do Evangelho não é apenas intelectual ou teológico. Ele
também é pessoal e prático, pois pregar o Evangelho do amor de
Deus significa questionar nossa falta de amor assim como nosso desejo
constante de nos colocar, nós e nossos desejos, no centro do
universo. É surpreendente que, apesar de dois milênios de
apostolado cristão, os cristãos (eu também, claro) sejam tão
inexperientes e chauvinistas com relação a amar. Mas isso acontece
por termos definido o amor humano como o centro mesmo de todo amor,
excluindo todos os outros. Claro que o amor por nossos irmãos
humanos é de uma importância inestimável, mas não é a única
forma de amor possível. O amor de Deus requer um amor que comece a
se assemelhar ao amor inclusivo e englobante do próprio Deus. [...]
A
terceira e última esfera que escolhi abordar é a do sacerdócio
cristão.
É evidente que um culto amplamente antropocêntrico, com uma
predicação antropocêntrica do Evangelho conduz inexoravelmente a
uma forma de sacerdócio cristão onde a preocupação concreta com
os animais esteja excluída. Muitos acharão extravagante a idéia de
que preocupar-se com os animais seja uma forma legítima de
sacerdócio cristão.
O fato
de acharmos isso extravagante é significativo. Como foi dito no
capítulo 1, para que o sacerdócio cristão assemelhe-se realmente
àquele do Cristo, ele deve seguir o ensinamento do Cristo. Mas o
sacerdócio de Cristo, segundo as Escrituras, não se esgota nos
cristãos, nem mesmo na humanidade. Quando os primeiros cristãos
começaram a pensar sobre o significado da obra de Cristo, foram
obrigados a enxergá-la como obra de Deus, mas também enxergar que
esta se estendia pelo cosmo. "Pois, escreveu Paulo, Deus quis
que toda plenitude habitasse nele; ele quis reconciliar tudo consigo
mesmo, tanto o que está sobre a terra como o que está nos céus,
fazendo a paz através de si, pelo sangue de sua cruz34".
É uma
vergonha imensa que tão poucos cristãos tenham entendido o que
realmente dizem as Escrituras e tenham colocado no lugar várias
outras idéias passageiras. Na verdade, em nossos dias estas palavras
nos falam com força, agora que os cristãos estão conscientes da
natureza independente da criação. Devemos abandonar a idéia de que
tudo o que veio de Cristo seja importante e significante apenas para
uma única espécie do universo criado por Deus. Com certeza o
sacerdócio cristão é importante para a espécie humana e isso de
modo crucial, pois os humanos são a podridão moral do universo.
Nossos pecados, nossa violência e nossa maldade clamam ao céu por
uma ação eficaz que traga um remédio. Mas ainda que centrado
na humanidade, o sacerdócio de Deus em Cristo não está limitado a
apenas uma espécie. "Todas as coisas", essa é a grande ideia bíblica que devemos aprender - sim, "todas as coisas"
em Cristo.
Eis a
base de um sacerdócio contemporâneo que contemple todas as
criaturas. Efetivamente, em vez de capitalizarmos o trabalho de
reconciliação de Deus através de Cristo, como uma propriedade
apenas da espécie humana, deveríamos compreender o objetivo deste
trabalho de reconciliação e nos liberarmos - nos tornarmos livres
para propor e manifestar este sacerdócio de reconciliação, de
solicitude para todas as criaturas. O que é realmente extravagante e
perverso é o fato de não haver um sacerdócio para todas as
criaturas: a idéia que a tarefa de Cristo seja de amplidão cósmica,
mas a nossa seja menor. [...]
Pregar o
Evangelho sempre teve um aspecto subversivo, qualquer que seja o
esforço dos cristãos do establishment
para camuflá-lo ou asfixiá-lo. O Evangelho é subversivo, pois ele
fala necessariamente de uma ordem diferente
da ordem estabelecida, de uma ordem de justiça e de compaixão. E
também ou ainda mais - verdadeiro no que diz respeito aos animais do
que os negócios puramente humanos. O Evangelho aparece em nosso
pensamento quando adquirimos a convicção que nossos julgamentos
sobre o que é bem e mal são egoístas ou injustos, quando de
repente notamos que, do ponto de vista divino, somos mesquinhos e sem
coração. As comunidades de fé engajadas no conceito do
arrependimento poderiam nos ajudar a sentir aflição pelas
crueldades cometidas contra os animais, mas também a manifestar isso
publicamente, nos ajudando assim a mudar nossas vidas.
Mas a
esperança do Evangelho consiste em que os gritos do "mudo"
são
escutados35,
que por mais surdos que sejam os humanos, Deus escuta os gritos das
criaturas. E não se trata de uma conjectura vazia. De fato, os
cristãos que estão plenamente instruídos com relação à justiça
de Deus deveriam tremer quando pensassem no julgamento final. De
acordo com uma velha tradição apócrifa, no julgamento final, as
criaturas não humanas serão as primeiras a serem chamadas por Deus
para "testemunharem" contra cada ser humano36.
Com a maneira que Deus conta, os últimos poderão se tornar os
primeiros de uma maneira que nunca imaginamos antes.
Convém
concluir olhando em direção do futuro. O Evangelho é
incompreensível se não temos um sentido adequado da escala do tempo
de Deus, e na crença em sua justiça suprema. Em realidade, estou
cada vez mais persuadido que, sem tal convicção, todo esforço
moral será considerado como vão. A esperança evangélica no futuro
não é um tipo de extra opcional, mas o fundamento essencial do
esforço moral. Pessoalmente, creio não apenas nesta terra - na
beleza e no valor das criaturas de Deus que vivem aqui - mas também
na nova
terra - e em todas as criaturas salvas, tanto humanas quanto animais
que a habitarão. Que as outras criaturas possam não estar presentes
em nossa concepção de paraíso é tão lamentável quanto nossa
concepção limitada do culto, do Evangelho e do sacerdócio [...]
(c)
Copyright, Andrew Linzey, 1999.
Notas
1
Cf.
Gênesis 1: 27-30.
2
Epístola aos Colossianos 3: 9 f e 3: 12.
3
Evangelho de Marcos 2: 16.
4
Evangelho de Marcos 1: 13.
5
Evangelho de Mateus 21: 1-7.
6
Evangelho de Mateus 12: 10 ff.
7
Evangelho de Lucas 12: 6 e 12: 27.
8
Evangelho de Lucas 9: 58.
9
Evangelho de Jean 1: 36.
10
Papel que reage à acidez ou alcalinidade mudando de cor ao entrar em
contato com a substância a ser testada [Nota do tradutor].
11
Epístola aos Colossianos 1: 19 f.
12
Epístola aos Romanos 8: 18-24a.
13
Michael Ramsey, citado e discutido em John V. Taylor, The
Christlike God,
SCM Press, Londres, 1992, pág 100.
14
C. S. Rodd (éditorial), Expository
Times,
vol. 106, n°1, outubro - 1994.
Fico
feliz em expressar minha gratidão a Rodd pelo seu comentário
perspicaz e penetrante. Sob sua direção, o Expository
Times
mostrou uma notável abertura às questões de teologia relativas aos
animais.
15
Karl Barth, Dogmatics
in outline,
traduzido por G. T. Thomson, SCM Press, Londres, 1968, pág. 66.
21
Abordo essa questão de forma mais detalhada em: Animal
Theology,
páginas 32 a 35.
22
Salmo 36: 6, citado e comentado por Karl Barth, Church
Dogmatics,
III/I, p. 181.
23
Louis Sullivan é um antigo secretário do Estado americano da saúde,
mais longamente citado por Linzey na parte não reproduzida do
capítulo 4 de Animal
Gospel
por uma intervenção feita em um colóquio ocorrido no Vaticano.
(Fonte da citação: Louis Sullivan, citado no National
Catholic Repórter,
vol. 27, n°6, 30 novembro 1990, página 4.)
24
Submeti a "tese da igualdade de interesses" de Singer a uma
crítica aprofundada no capítulo 2 de meu Animal
Theology.
Creio que o "paradigma da igualdade" deveria ser
substituído por um "paradigma da generosidade" sob uma
base cristológica.
25.
Cf.
Andrew Linzey, SPCK (Londres) et Crossroad (New York), 1987, capítulo
5: "The Theos-Rights of Animals".
26
Na tradução de Chouraqui->http://nachouraqui.tripod.com/id80.htm],
não se fala de "gado que se engorda": "Então o lobo
será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé do cabrito,
o touro e o leão comerão juntos, e um menino pequeno os conduzirá".
[Ndt
27
Isaías 11: 6-9.
28
Malcolm Muggeridge, Chronicles
of Wasted Time,
vol. 1, The Green Stick, Collins, Londres, 1972, pág. 123.
29
Salmos 24: 1.
30
Andrew Linzey, Animal
Rites: Liturgies of Animal Care,
SCM Press, Londres, 1999; difundido nos EUA por Trinity Press
International.
31
Andrew Linzey, An
Order of Service for Animal Welfare and/or Blessing,
RSCPA, Horsham, 1975, pages 1 à 17, disponível na Education
Department de la RSCPA.
32
"Anti-bat campaigners, led by Catherine Ward, who complained
about bats in churches of her husband's benefice in Norfolk, have
launched the Movement Against Bats in Churches (Mabic)", Church
Times,
9 outubro 1992, p. 1. Para detalhes sobre esta estranha
correspondência ver Church
Times,
21 e 28 agosto, 11 setembro e 16 outubro. A legislação relativa é
o Wildlife
and Countryside Act
de 1981 que contem algumas disposições de base para a preservação
das espécies ameaçadas.
33
O Dr. I. Cuthbert, um biólogo que aconselha as autoridades locais
sobre os pombos escreve: "Ainda que muitos afirmem o contrário,
os pombos e seus dejetos não são mais perigosos para a saúde
humana do que qualquer outra espécie animal e o são muito menos do
que a maioria dos animais. Por isso não está claro porque os pombos
não são tolerados nas igrejas, catedrais e demais prédios
religiosos e porque não são apreciados por sua graça e
comportamentos. Se, apesar disso, as pessoas não desejarem os pombos
nos prédios, há muitos métodos eficazes para dissuadi-los de ali
ficarem ou para eliminar as razões que os atraem até estes lugares
em particular. Dentre os métodos eficazes que podem ser usados, não
precisamos usar armadilhas nem machucá-los; podemos usar os picos
(que estão disponíveis em várias cores e podem ser simplesmente
colados na superfície dos prédios). Os picos (pontas de ferro
finas) custam barato, dependendo dos fornecedores que forem
escolhidos. O gel contra o pouso não deveria ser utilizado: ele pode
ser mortal para os pássaros além de também deteriorar os prédios
e seu efeito ser de curta duração. Por causa da deterioração que
pode ocorrer ao longo do tempo, ou por causa das instalações
defeituosas, as telas devem ser inspecionadas regularmente para
libertar os pássaros que eventualmente ficarem presos. Eliminar os
pombos é uma perda de tempo e de dinheiro. Por outro lado, não há
métodos humanos para eliminar pombos selvagens". Para mais
informações entrar em contato com o Dr. I. Cuthbert, Brooside
Cottage, Glovers Road, Charlwood, Surrey RH6 OEG. Para saber mais
sobre o controle dos nascimentos com o uso de pombais contraceptivos,
entrar em contato com The B C Group Trust, PO Box 102, Newmarket,
Suffolk CB8 ORU.
34
Epístola aos Colossianos 1: 19 f.
35
Referência a esta frase da bíblia: "Abre a boca a favor do
mudo, pelo direito de todos os que se acham desamparados".
(Provérbios 31: 8) [NdT].
36
Ver II Enoch (Apocalypse eslavonico de Enoch), capítulos 58-59,
citado e discutido em Richard Bauckham, "Jesus and the Animals
I: What Did He Teach?", em Animals
on The Agenda,
páginas 34-35. Este tema também foi desenvolvido em Axel Munthe,
The
Story of San Michele,
John Murray, Londres, 1948.
Professor da Faculdade de Teologia na Oxford University (Inglaterra) e diretor do Oxford Centre for Animal Ethics. É professor honorário da University of Winchester, e professor especial na Saint Xavier University, Chicago (EUA). É também o primeiro professor de Ética Animal na Graduate Theological Foundation, Indiana (EUA).
________________________________________________________________
Artigo já publicado em outros veículos, publico neste blog a partir desta fonte: